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Crítica


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Sinopse

Tim e Chloé encontram a felicidade numa rotina sem compromissos. Mas, quando a filha deles, Tommy, entra na escola, as coisas começam a mudar. Ela desaparece, ele rouba um carro e aparece um cosmonauta em cena.

Crítica

Na primeira cena de Felicidade, Tommy, uma menina de não mais do que dez anos de idade, é colocada em frente aos pais, durante uma refeição em uma lanchonete, para uma terrível revelação: apesar de acreditar ser filha legítima dos dois, o pai relata que a garota foi deixada aos cuidados deles por um casal de amigos, que nunca mais retornou para buscá-la. E a maior surpresa é que o pai verdadeiro agora é um cantor de sucesso, então os dois estariam lhe dando uma opção: ir atrás dos verdadeiros genitores ou continuar com a família adotiva. O momento é tenso, e o espectador, chocado pela informação, fica no aguardo da reação da criança. Só que essa, ao invés de chorar ou se desesperar, opta por rir e fazer pouco caso. Ela não acreditou em nada do que foi dito. E os pais também acham graça, ao perceberem que não foram convincentes o suficiente. Era apenas mais uma “pegadinha” entre eles. E este tom, indeciso entre a responsabilidade ou em levar tudo na brincadeira, dita a narrativa do longa escrito e dirigido por Bruno Merle, tanto para o bem, quanto para o mal.

Tim (Pio Marmaï), Chloé (Camille Rutherford, de Azul é a Cor mais Quente, 2013) e Tommy (a estreante Rita Merle) são nômades, andarilhos, pessoas que se acreditam livres, porém estão sempre indo ao encontro ou fugindo de algo. Logo em seguida é possível vê-los em uma bela casa de campo, apenas para pouco depois a audiência se dar conta que não verdade são invasores – o lugar é de uma outra família. Ao descobrirem que estes estão voltando de férias, tratam de rapidamente arrumarem as coisas e se mandarem dali o quanto antes. Sem nunca parar por muito tempo num mesmo ambiente, possuem como único ponto a retornar um barco ancorado em uma marina esquecida de uma pequena cidade litorânea. O pai, um ex-presidiário em condicional, passa os dias pensando em pequenos golpes. A mãe é a única com emprego mais ou menos fixo – é empregada doméstica em uma agência que a indica para trabalhos eventuais. E a filha, no meio disso tudo, tem apenas um sonho: ir para a escola.

Este talvez seja o aspecto mais curioso a respeito de Felicidade: como a inversão de valores pode se dar de maneira tão específica dentre os membros de uma mesma família. Lembra um pouco a fábula do bandido que teve dois filhos: um se tornou policial, enquanto o outro acabou virando também um fora da lei. Ambos, no entanto, ao serem perguntados sobre os motivos que os levaram a escolherem tais destinos para suas vidas, deram a mesma resposta: “também, com esse pai, o que mais eu poderia ser?”. Aqui, porém, tem-se um casal com apenas uma filha, mas essa resume bem o dilema exposto na anedota: sua admiração pelos pais é imensa. Por outro lado, tudo o que mais ambiciona é ser diferente deles, seguir por outros caminhos, obter uma segurança que, pelo jeito, até então nunca chegou a desfrutar.

Quando Chloé, após um dia de trabalho, não retorna no horário esperado, Tim começa a entrar em pânico. A tranquilidade e certeza que fazia questão de transparecer em cada uma das suas ações aos poucos começa a ruir, oferecendo o vislumbre de um homem pequeno e amedrontado. Entre recorrer a amigos e voltar às antigas práticas que tempos atrás o levaram ao encarceramento, será a menina que carrega consigo o lembrete constante de que há algo mais a ser considerado na equação. Quando mais nada parece fazer sentido àqueles que deveriam agir de forma madura, será a pequena que, por mais simples que seja a sua vontade, os obrigará a, enfim, encontrar um rumo não para um ou outro, mas para todos eles. Independente de quanto tempo ou o quão difícil forem as escolhas a que se verão impelidos a assumir.

Após uma série de curtas-metragens, Bruno Merle estreou como diretor de longas com o independente Héros (2007), que chegou a ser exibido em uma mostra paralela do Festival de Cannes. Desde então, tem atuado mais como roteirista no cinema e na televisão, e a volta ao formato só se dá agora, com um filme enxuto, que vai direto ao ponto e se apoia radicalmente no comprometimento e entrega dos seus protagonistas. Marmaï, completamente à vontade, é a energia da trama, ao mesmo tempo em que a languidez e a sexualidade de Rutherford funcionam como um bom contraponto à presença masculina. Mas de nada adiantariam os esforços deles se não estivessem ao redor da fragilidade e determinação da jovem estreante, filha do realizador. Partindo de uma estrutura já conhecida – o road movie – e tendo como exemplo invertido uma família rígida, atenta às convenções sociais, porém sem espaço para a imaginação (os donos da casa), Felicidade tenta mostrar que esse é muito mais um estado de espírito do que um feito a ser alcançado ou um espaço a se ocupar. Não que seja tão simples, mas ao menos é um bom lugar para se começar.

Filme visto online no 11º MyFrenchFilmFestival, em fevereiro de 2021.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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