Crítica
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Sinopse
Correspondências trocadas entre o pai argentino e a mãe indiana do diretor são lidas durante vários dias por um rapaz e uma moça. As cartas falam de amor e idealismo, mas também de sonhos desfeitos pelo tempo.
Crítica
Há certo receio ao se deparar com um documentário em que o diretor narra a história de sua família – sobretudo se, como Andrés di Tella, ele já tiver realizado anteriormente um filme sobre o pai, e outro sobre a mãe. Surge o medo – preconceito confesso do crítico, na acepção mais original do termo – em presenciar com um cineasta incapaz de olhar para o resto do mundo, limitando seu universo particular de criação à vivência pessoal. Pior do que isso, estes projetos nos preparam à possibilidade de encontrar uma enésima obra terapêutica, do tipo elaborado em última instância para o próprio cineasta resolver seus traumas, ao invés de se oferecer ao espectador. As fotografias e cartas, elementos centrais de que o cineasta dispõe neste caso, poderiam se prestar ao sentimentalismo, ao teor de homenagem e/ou idealização dos pais, que trocavam mensagens carinhosas a respeito do instante transformador em que se conheceram. Há tantas armadilhas e possibilidades de cair em lugares-comuns que constitui um alívio descobrir uma preocupação maior com o cinema do que com o percurso dos pais. Em outras palavras, a família se torna ponto de partida para o diretor questionar as possibilidades de contar um evento real.
Que direito ele teria de expor a vida privada dos pais, incluindo fotos da nudez de um e da outra? Ao utilizar dados reais (fotos e cartas), não estaria sugerindo uma aparência de verdade capaz de induzir a uma leitura equivocada sobre ambos? Ele teria o direito de supor a felicidade do pai numa foto, ou a tristeza da mãe na imagem seguinte? Em que medida a leitura das cartas carregaria um teor de emoção muito distinto daquele existente em quem o escreveu e, em seguida, na pessoa que as leu? Tella parte do princípio que toda criação se torna uma recriação, sendo impossível impor objetividade, ou mesmo isenção de responsabilidade diante dos significados sugeridos. Para ele, a fotografia não implica numa apreensão do mundo, e sim num convite à imaginação: quem seriam as outras pessoas nas fotografias, e o que estaria acontecendo, espontaneamente, antes da fotografia posada? De que maneira a fotografia interfere na realidade, e a partir de qual momento ela passa a nos observar de volta – a nós, espectadores e interlocutores? Em que medida as histórias (todas elas fictícias, em variados graus) dependem da nossa crença, nossa fé na arte e nossa confiança no outro, para existirem de fato? Estas são algumas das fascinantes e reflexões levantadas ao longo do projeto.
Em outras palavras, o diretor se revela obcecado não apenas pelo passado familiar, mas também pela capacidade de representação do cinema. Ficção Privada (2019) coloca em prática um vertiginoso dispositivo no qual as imagens se completam, se anulam ou se provocam. Há diferentes vozes na narração: a confissão do cineasta, a interpretação de um ator e amigo, adotando o tom típico das narrações em off, e também a voz de dois jovens atores argentinos, interpretando o pai e a mãe durante a leitura das cartas. O filme vai além, filmando as leituras “brancas” das cartas, e depois interpretadas, modificadas, mesmo musicadas. A câmera acompanha os atores em cada passo que dão, seja nos metrôs ou nas ruas da cidade (pode-se falar numa câmera-stalker?), registrando longamente um beijo de ambos na calçada. Há uma tentativa tão instigante quanto neurótica de captar algo além da imagem, uma verdade que ultrapasse a representação fictícia. O diretor transmite ao mesmo tempo profunda fé no cinema e desconfiança de que ele seja, em bom entendimento platônico, mero decalque do real. Tella chega ao cúmulo de filmar uma longa imagem panorâmica das calçadas de Buenos Aires, sem cortes, porém congelando o plano-sequência algumas vezes, no instante exato em que fornecem belíssimos stills. Se a imagem estática se torna movimento no cinema, o cineasta devolve o movimento de volta à condição estática. Quantos stills belíssimos não existem nas viagens que fazemos de carro, observando pela janela, mas sem podermos interromper o milésimo de segundo exato em que algum fenômeno se produz à nossa frente?
Tamanho caleidoscópio de estilos e representações poderia colocar a forma acima do conteúdo, ou ainda transformar os pais do cineasta em objetos de estudo desprovidos de personalidade. No entanto, após cada elucubração metalinguística, o filme retorna à psicologia de todas as figuras envolvidas nesta trama: o pai, a mãe, o filho-diretor, os atores, e mesmo os espectadores. Sigmund Freud é mencionado para se questionar a identificação e a ética das imagens: não seria obsceno nos levar à identificação com pessoas que sequer conhecemos?, pergunta o ator. A metáfora do violino, empregada em uma das cartas, seria uma alusão positiva ou negativa à experiência do casal? Não estaríamos apenas projetando nosso próprio histórico amoroso na vivência alheia? Tella nos convida a participar desta investigação, enquanto expõe a si mesmo com uma franqueza ímpar. Ainda que esteja pouco presente nas imagens, ele jamais se isenta de consciência pelas múltiplas escolhas de enquadramento, de luz e de edição. Assim se desenha o profundo interesse deste projeto, que deixa de ser um filme sobre os pais de Tella para se tornar um filme sobre os perigos, dificuldades, impossibilidades e prazeres de representar qualquer pessoa que amemos, sabendo que serão interpretadas de modo incontrolável por terceiros.
O diálogo cerebral com a linguagem artística poderia conduzir a um resultado frio, risco que Ficção Privada também evita. Há metáforas belíssimas envolvendo a filha de Tella, as fotografias imersas em poças d’água, o labirinto infinito dentro do cemitério, as fotografias (íntimas, domésticas) sendo levadas para “passear” nas ruas (espaço anônimo e público). Um trecho sintetiza bem a poesia intelectual do diretor: pouco após a morte da mãe, ele a encontrou numa viela perto de casa. Não era imaginação, reforça, era a própria mãe. Sem registros deste momento, obviamente, recorre a gravações atuais da viela vazia, a reconstruções via Google Earth, e principalmente, à nossa capacidade de imaginar a mãe do diretor, que vimos em fotos e compreendemos por cartas, projetada ali, na viela, fantasmática, sorrindo ao filho vivo. No fim das contas, a montagem é efetuada por nós, espectadores, que construímos uma identidade completa dispondo de alguns fragmentos de imagem, outros fragmentos de som, algumas insinuações e indícios. Recebemos os preciosos cacos, mas o vaso decorrente da junção será diferente para cada interlocutor. O cinema documental não se torna veículo de uma mensagem, tampouco serve de suporte para a mumificação do real, como sugeriria Bazin, prestando-se a um jogo de incertezas decorrente do ato de co-criação com espectador. O filme só se completa de fato nos olhos de quem o vê.
Filme visto no 25º É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários, em setembro de 2020.
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