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Sinopse
Três gerações atravessadas pelos horrores da ditadura civil-militar brasileira. Mergulhar nas histórias familiares é, inexoravelmente, entrelaça-las com a história do Brasil e entender o silêncio como ferramenta de apagamento.
Crítica
Embora diga em certo instante de Fico te Devendo uma Carta Sobre o Brasil que a intenção era fazer um filme sobre sua avó, Iramaya Benjamin, a cineasta Carol Benjamin começa afirmando que o percurso visa juntar pedaços de uma história paterna voluntariamente silenciada. Todavia, depois do preâmbulo, que ensaia fazer do processo cinematográfico o protagonista, com a cineasta expondo a carta em que avisa ao pai da disposição de ir à Suécia em busca da narrativa que ele próprio se nega a relembrar, o filme vai sustentando um olhar prioritário e afetuoso à mãe do homem que a gerou. Essa mulher notável precisou desfazer-se de convicções pessoais ao encarar turbulências domésticas e sociais a fim de garantir a salvaguarda dos filhos perseguidos pela ditadura. Portanto, o caráter pessoal deixa de ser fundamentado no percurso de Carol e passa a se desprender efetivamente dos resultados dessa bonita arqueologia feita de cacos colados paulatinamente. Ao tentar compreender quem, de fato, foi César Benjamin, a diretora se depara com a resiliência de Iramaya.
Reassumindo a centralidade do discurso apenas no encerramento, ao realizar uma ressignificação muito bonita e contundente – "deixando" de ser filha e neta, passando a ser mãe preocupada com o futuro de seus pequenos – Carol privilegia os efeitos das deambulações por arquivos e testemunhas, não chamando atenção demasiadamente ao seu trajeto certamente árduo. Nesse sentido, deixando os holofotes à luta de Iramaya pela libertação do caçula ilegalmente confinado nos porões da ditadura civil-militar brasileira, ela vai tendo o pai também revelado, ainda que bem mais pela perspectiva da avó, uma vez que ele emudeceu durante mais de 30 anos a respeito de sua senda de sofrimento. Fico te Devendo uma Carta Sobre o Brasil tem, ao menos, três personagens principais, cujas características facilitam uma adesão quase imediata por parte do espectador. A primeira delas é a genitora corajosa que lutou com unhas e dentes pela integridade dos filhos perseguidos e torturados. O segundo é justamente o menino injustiçado, golpeado covardemente pelo Estado cruel que utilizou sua inteligência como subterfúgio para manter um menor de idade trancafiado e alheio ao exterior.
O terceiro pilar de Fico te Devendo uma Carta Sobre o Brasil é nosso país, mais especificamente sua História, tendo sempre em vista o quão cíclicos são os arroubos de autoritarismo e obscurantismo supostamente em nome da harmonia patriótica. Já a Carolina cabe, especialmente entre o prólogo e o epílogo em que se aventura pelo protagonismo, o papel de articuladora das descobertas. Estas revelam as engrenagens de sua família e da nação que atualmente ainda lida mal com os espólios de suas vergonhas. O que mais chama a atenção no processo de construção narrativa do filme é a utilização pouco comum das imagens. Algumas delas são diretamente referentes aos casos que estão sendo contados, tais como as fotografias de César encaradas pela primeira vez por sua filha, os resgates de pronunciamentos da imprensa e os registros íntimos. Já outras são bem mais representativas, como os passeios breves por penitenciárias e vislumbres do trânsito marítimo. Elas são encarregadas de estabelecer sinapses poéticas entre os fatos em esclarecimento e possíveis sensações.
Carol Benjamin não se restringe ao material ilustrativo, trazendo à constituição visual de Fico te Devendo uma Carta Sobre o Brasil breves reflexões partindo das texturas, vide o amarelado das cartas que denota o decorrer do tempo ou a ranhura da parede capaz de simular a intensidade abrasiva do regime tão canalha como o que regeu o Brasil por 21 anos. Longe de reflexões cansativas acerca das suas posições diante, por exemplo, da negativa do depoimento paterno, a realizadora aparentemente compreende ao longo do caminho que algumas perguntas inexoravelmente ficarão sem respostas e que o aparentemente simples gesto de formulá-las pode representar impulso ao entendimento, à aproximação das dores alheias e ao oferecimento de um suporte sutil às mesmas. A admiração por Iramaya é transferida da neta obviamente orgulhosa ao espectador por essa organização bem-sucedida que mescla ternura, contundência e respeito. Tido como ruído nocivo da violência estatal, o silêncio é afrontado sensivelmente pela cineasta que se equilibra bem entre ouvir, meditar e comentar.
Filme visto online no 25º É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários, em setembro de 2020.
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