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Quantos porquês cabem diante de uma imagem? Às vezes um quadro cinematográfico contém pouca carga de informação e/ou provocação. Noutras, são abundantes certas reiterações que denotam uma pobreza de linguagem, como alguém descrevendo o que está sendo mostrado. Mas há planos transbordantes de potência. Então, qual é o papel da curiosidade do olhar para desvendar até o que nem foi pensado para gerar sentido? A cineasta Janaína Nagata faz um instigante exercício de interesse em Filme Particular, partindo do acaso para empreender uma jornada de investigação. Tudo começa quando ela compra um filme 16mm na internet. Janaína nada sabe do conteúdo do rolo, mas é justamente a curiosidade que a mobiliza para compreender o significado das filmagens caseiras de uma família em viagem por um país africano. A localização dos turistas é vagamente sugerida pelos safaris e outros traços característicos. E a cineasta exibe na íntegra os 19 primeiros minutos desse filme desconhecido, apenas incluindo uma trilha significativa feita de sonoridades ora graves, ora agudas, mas constantemente incômodas (no bom sentido). Ao fim da exibição das cenas que contemplam animais selvagens e visitas a grupos etnicamente diversos, a cineasta compartilha com o espectador os mínimos detalhes de sua apuração, criando um thriller que implica a retenção da História nessas imagens.
Em vez de mostrar alguém pegando um avião e se deslocando para os cenários posteriormente identificados no tal filme caseiro etiquetado vagamente como “filme particular”, Janaína compartilha o seu processo realizado online por meio de ferramentas como sites de busca, decodificadores de palavras escritas em voz, editores de imagens e afins. E um dos resultados dessa equação provocativa é a ressignificação das imagens em movimento a partir das informações adquiridas aos poucos. Antes disso, algumas coisas chamam a atenção nos 19 minutos pré-montados: o olhar estrangeiro geralmente voltado para o exótico; o choque social entre a família branca abastada e a população negra nativa relegada constantemente à subalternidade; o trânsito por paisagens distintas (o que insinua uma viagem longa). Tudo parece relativamente trivial antes de sabermos em qual contexto aquelas imagens foram feitas. Isso, especialmente no que diz respeito à tensão racial dentro de uma lógica de segregação institucionalizada. A trama avança como se a realizadora desenrolasse um novelo ou, mais precisamente como imagem simbólica, um emaranhado. Cada pedacinho de descoberta incita mais a curiosidade sobre o que existe no universo rico daqueles 19 minutos que, logo, adquirem novos significados.
Filme Particular é um thriller no qual a investigadora é uma mão invisível guiando um mouse por aplicativos, sites e demais ferramentas à disposição. É interessante a opção de dividir a tela em vários momentos para que vejamos, passo a passo, a curiosidade mobilizando as quase epifanias. Há um quê de cômico na transposição em voz dos textos que interessam à diretora. Além disso, esse procedimento cria uma camada de narração que aproxima o espectador da experiência – afinal de contas, boa parte de nós lida frequentemente com dispositivos semelhantes no cotidiano. A estratégia utilizada por Janaína Nagata para possibilitar ao espectador uma identificação quase imediata com as etapas da investigação passa também pela barreira dos sites pagos e por publicidades que invadem a tela em diversas circunstâncias. Assim, ela emula um processo de cunho, digamos, realista. Claro, tudo aquilo é devidamente construído para transmitir a sensação de estarmos basicamente assistindo a uma tela compartilhada. Existe algo de instigante até na lógica de aproveitar a publicidade como um elemento do discurso. Por exemplo, vide a ênfase à propaganda do curso sobre grandes estadistas que precede o vídeo sobre um dos arquitetos do Apartheid. Fica implícito o funcionamento algorítmico: se alguém se interessa por A, talvez compre algo relacionado a políticos de pensamento parecido.
Como em todo thriller, um dos desafios é manter a tensão e a expectativa em voltagem considerável enquanto as dúvidas são provocadas/sanadas. Filme Particular engaja por meio do acúmulo de informações que oferecem tintas mais consistentes para um filme caseiro aparentemente inofensivo e sem qualquer valor, a não ser talvez à família que registrou essa viagem à África do Sul. Assim, Janaína Nagata exerce uma curiosidade que transforma imagens aparentemente banais em mistérios a serem solucionados. Em meio a isso, ela resgata personagens históricos, como o homem que arquitetou o regime de segregação racial implementado na África do Sul em 1948 e o místico que enriqueceu anunciando ser mais poderoso do que Deus. Mesmo com um encerramento abrupto, do qual decorre uma ligeira sensação de inconclusão, o longa-metragem faz um levantamento estimulante de imagens cinematográficas. E nessa investigação, o exame do ponto de vista de quem registrou os 19 minutos permanece nebuloso. Num âmbito geral, pode-se entender que se trata de uma família estrangeira, branca, com certo grau de simpatia (relação?) por homens do Apartheid. Mas, num âmbito específico, quem compunha aquela família? Que papel político desempenhava o patriarca visto geralmente ao lado da filha nos cartões postais da África. Um bom thriller precisa oferecer todas as respostas?
Filme assistido durante o 11º Olhar de Cinema de Curitiba, em junho de 2022.
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