Crítica
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Crítica
Há uma expectativa especial que recai sobre cineastas não anglófonos fazendo o seu primeiro filme falado em inglês. Afinal de contas, são inúmeros os exemplos de artistas de destaque em seus respectivos territórios que tiveram pouca (ou nenhuma) liberdade criativa ao comandar produções de calibre internacional – ainda mais quando ela tem astros e estrelas no elenco e/ou recebe financiamento de grandes estúdios. Firebrand é a estreia do cineasta cearense Karim Aïnouz nesse universo, além disso, deslocado dos (melo)dramas intimistas com os quais nos presenteou nos últimos anos. A trama é protagonizada por Katherine Parr (Alicia Vikander), sexta e última esposa do rei Henrique VIII (Jude Law) e Rainha Consorte da Inglaterra e da Irlanda de 1543 até 1548. Essa mulher que ocupa um dos lugares mais importantes da corte vive em estado de tensão, até porque as suas antecessoras foram vítimas da ira do marido-monarca colérico e egóico. O sujeito decapitou rainhas diante de alguma suspeita/frustração. Portanto, a vida de Katherine parece sempre em risco, um contrassenso para quem ostenta a cobiçada coroa. E a ameaça aumenta por conta das convicções políticas reformistas da rainha, de ímpetos modernos que encontram muita resistência na estrutura tradicional da monarquia britânica. Karim aborda a personagem a partir de sua coragem, mas também do perigo de ser mulher ali.
Diante do novo filme de um cineasta com marcas autorais tão consolidadas, é natural buscar pontos de contato com a sua obra pregressa. Por mais que seja muito diferente de Madame Satã (2002), O Céu de Suely (2006) ou mesmo de A Vida Invisível (2019), Firebrand tem uma coisa em comum com alguns destes e de outros filmes comandados pelo brasileiro: a observação das dificuldades de ser mulher, especialmente em determinados contextos de poder. Nesse drama histórico repleto de figurinos suntuosos e nomes globalmente conhecidos, Karim Aïnouz segue investigando os enraizados efeitos nocivos do patriarcado, sobretudo a construção de uma ideia destrutiva como a da subalternidade feminina ao masculino. Desta vez, isso fica ainda mais implícito em certas dinâmicas, como as interações entre Katherine e o bispo da corte britânica (interpretado por Simon Russell Beale). As atitudes do religioso são orientadas sugestivamente por essa tese da supremacia de gênero, haja vista a forma insolente como ele se dirige a alguém que hierarquicamente está acima no organograma real. O bispo somente desafia a rainha porque se apoia na ideia medieval de que homens são superiores às mulheres, além de ter respaldo do rei não menos misógino. Tanto que a demonstração do núcleo de apoio feminino, perceptível na conversa de Katherine com a antiga amiga acusada de heresia, acaba em tragédia.
Firebrand é um filme classudo, com direção de arte belíssima e todos os atributos visuais/ técnicos próprios de uma produção de época com tantas grifes importantes envolvidas. Karim Aïnouz consegue (re)construir o universo convulsionado da corte inglesa no século 16, enfatizando a fragilização de gênero em meio a crises diplomáticas, conspirações palacianas e o exercício de uma monarquia delirante pelo poder ilimitado. O diretor brasileiro opta por não esmiuçar algumas coisas, como a ligação entre Katherine e Anne (Erin Doherty) – personagem fascinante, pois a mulher cuja coragem inexoravelmente a levará a um destino dramático. Essa conexão afetiva e ideológica serve apenas como prólogo do calvário que a rainha viverá ao lado do homem tomado pela infecção na perna e, em semelhante medida, pela metafórica febre da onipotência de ser rei e homem dentro das ordens imperiais. Outras situações acabam não sendo também muito elaborados, como a conexão emocional de Katherine com os filhos de suas antecessoras assassinadas, o interesse amoroso da rainha em constante perigo com o nobre Thomas Seymour (Sam Riley) e as maquinações com Edward Seymour (Eddie Marsan). Todos esses elementos e elos estão ali, mas carecem de desenvolvimento e tempo para irem além de um simples contexto. De toda maneira, o filme não é tão prejudicado por essa superficialidade.
É preciso falar do elenco de Firebrand, mais especificamente de sua excelência. Alicia Vikander apresenta um desempenho notável como a rainha moderna que luta por reformas capazes de, por exemplo, conceder ao povo o poder da interpretação da bíblia. Encarregado de personificar o machismo que se torna ainda mais agressivo ao avistar a própria decomposição, Jude Law coloca o filme em outros patamares sempre que aparece como o monarca. Figura emocional e psicologicamente inconstante, o rei Henrique VIII às vezes é dado a afagos em sua esposa, noutras mandante de atos hediondos para continuar exercendo o poder de homem/monarca, mesmo que a sua perna esteja apodrecendo e empesteando o ambiente com um cheiro insuportável. De um lado, Katherine representa o vigor reformista, aquela que adota os filhos do rei como se fossem seus, cuida da amiga prestes a ser considerada inimiga da coroa e trata de sobreviver à convivência com Henrique VIII. De outro, o sujeito mimado pela onipotência de seu cargo, a personificação desse machismo decadente que continua fazendo vítimas. Em que pese a falta de elaboração de certos detalhes na relação entre os personagens, Karim Aïnouz passa bem no primeiro teste internacional, encarando exigências às quais provavelmente não está acostumado, mas mantendo o olhar e a voz que o credenciaram a chegar a esses lugares.
Filme visto durante a 25º Festival do Rio (2023)
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