Crítica
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Crítica
Historicamente, cada novo meio de comunicação tenta se apropriar da respeitabilidade do anterior para ser consagrado enquanto arte. Quando a televisão surgiu, sendo considerada mera diversão, ela buscou incorporar o tempo e a estrutura do cinema, que constituía a atividade mais popular até então. O surgimento do vídeo tornou a televisão respeitável, fazendo com que experiências videográficas tentassem instaurar o “padrão de qualidade” televisivo. O mesmo ocorreu com videoclipes em relação aos vídeos, e assim por diante – pelo menos, até a pós-modernidade em que vivemos. A linguagem pop possui um caráter regressivo, voltado à infância, ao prazer da repetição, da colagem e da linguagem de acesso imediato. Os meios passaram a operar em ordem inversa: hoje são os veículos consagrados que, na busca pela popularidade, tentam imitar a Internet, as redes sociais, o YouTube. A televisão está repleta de programas estrelados por influenciadores, apoiando-se em cortes rápidos e fala histriônica, típicos da comunicação adolescente nas telas portáteis. Ainda mais estranhos são os casos em que o cinema tenta se apropriar da linguagem da Internet, sem adaptá-la. Surgem então longas-metragens apostando no estilo dos jovens empolgadíssimos dos canais juvenis.
Por enquanto, a fórmula não tem funcionado, o que não impede as grandes empresas de continuarem tentando. Nenhum grande filme estrelado por influenciadores digitais, adotando o ritmo da Internet, conquistou bilheteria expressiva até agora (considerando que Larissa Manoela e Maísa Silva não constituem youtubers em si, e que seus filmes fogem da estrutura da Internet). Flops: Agente Nada Secretos (2020) pretende capitalizar o sucesso de Lucas Rangel, influenciador que já utilizou o grupo dos “Flops” em programas de seu canal no YouTube. A proposta é igualmente regressiva: temos não exatamente um jovem adulto fazendo filmes para crianças, mas tentando se passar por uma, resultando em personagens desconcertantes (na mesma escola maneirista de Lucas Netto, por exemplo). No filme, Lucas (Lucas Rangel) é um jovem adolescente, ao lado de outros atores com mais de 20 anos de idade em composições infantiloides. A estrutura se torna ainda mais questionável quando uma atriz adulta, interpretando uma jovem adolescente, usa seus poderes de sedução para obter informações através de insinuações eróticas com um guarda. Este universo demanda uma indulgência considerável do espectador para acreditar nestes personagens e nas situações improváveis.
A propósito, o roteiro possui sentido, coesão e coerência próximos do zero. É difícil imaginar que os criadores tenham passado mais do que algumas horas criando esta aventura genérica, repleta de não-conflitos: inicialmente, a presença dos Flops precisa ser escondida no resort, sob pena de fortes punições, mas a descoberta não acarreta qualquer consequência. Dani sonha em se tornar atriz, então cola no muro o cartaz “Sou atriz profissional” pedindo uma chance, sem deixar qualquer meio de contato. Um personagem é definido unicamente pelo prazer em comer mangas. O resort aparenta estar vazio, e as atividades ilegais descobertas pelo grupo ocorrem ali mesmo, numa salinha ultrassecreta cuja porta fica aberta. Mesmo a suposta prática dos vilões exige nossa suspensão da descrença: afinal, sequer vemos os responsáveis praticarem os atos pelos quais são perseguidos. Este é um universo de papelão, com agentes fingindo perseguir vilões invisíveis num lugar improvável, com armas que não passam de secadores de cabelo, canetas e chapéus comuns. O faz de conta se torna pertinente numa fantasia em estilo Detetives do Prédio Azul, estrelada por crianças, porém se torna constrangedor com adultos fazendo piadas sobre “dogatos” e “O rato roeu a roupa do rei Roberto”.
No entanto, o aspecto mais fraco provém da linguagem adotada. O diretor Edu Menim embute uma infinidade de acessórios na imagem: a tela se divide em três com um efeito de raio, o pensamento de um personagem é acompanhado do desenho “Loading”, sons ganham efeitos cartunescos de onomatopeias (“Knock Knock”) ou linguagem de celular (“Fui!”, impresso na tela quando uma personagem desmaia). Há pseudo jogos de videogame, trocadilhos e explicações não apenas da temporalidade, mas das ações: “Dia 1 ½: Descobrindo onde foi o Matheus”, “Dia 3: Encontro com o vilão”. O cineasta possui confiança nula na capacidade de compreensão do espectador, e também no potencial das imagens. Tudo precisa ser retocado, embelezado, sublinhado ao limite do grotesco. As atuações vão no mesmo sentido: Lucas Rangel demonstra uma debilidade dramática lamentável, e na ausência de recursos, limita-se a contorcer os lábios, revirar os olhos e fazer caretas. Os colegas “flopados” seguem o mesmo preceito segundo o qual a comunicação infantil exige que as pessoas falem AL-TO, com muita empolgação, numa artificialidade que subestima as crianças e a comunicação infantil. No papel da espiã Alexa, Alice Oliveira é a única atriz a demonstrar alguma preocupação maior em delinear sua personagem.
Por fim, o que realmente incomoda diante de um produto como Flops: Agentes Nada Secretos é o pressuposto de que, para o público jovem, qualquer brincadeira está de bom tamanho, portanto seria aceitável o esmero mínimo por parte da direção, produção e do elenco. O filme se converte num objetivo secundário diante da necessidade de fornecer um novo veículo para Lucas Rangel. A arte se torna objeto de retórica, ou melhor, um instrumento de marketing para que o jovem continue em voga com seu público-alvo. A pretensa mensagem sobre a defesa dos animais soa risível, de tão artificial: nenhum personagem manifesta o mínimo interesse pelo ecossistema, e não são dois minutos de selfies com tartarugas que reparam esta impressão. O debate politicamente correto a respeito da ecologia constitui mero pretexto para o longa-metragem se vender enquanto obra séria, com uma mensagem a passar para os pequenos. O resultado serve, à revelia, para comprovar a dificuldade de adaptar a velocidade, a fragmentação e o histrionismo do YouTube ao cinema. Afinal, trata-se de linguagens distintas, com experiências diferentes de espectatorialidade. Mas para quem desejava produzir apenas “um filme do Lucas Rangel”, o objetivo foi cumprido. O nome do astro e de sua trupe de Flops se torna uma finalidade em si mesma – todo o resto é enfeite.
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