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Sinopse

Flow mostra um mundo que parece estar chegando ao fim, repleto de vestígios da presença humana. O gato é um animal solitário, mas, quando seu lar é devastado por uma grande enchente, ele encontra refúgio em um barco povoado por diversas espécies, e terá que se unir a eles apesar de suas diferenças. Indicado ao Oscar 2025.

Crítica

Candidato da Letônia no Oscar 2025, Flow é, em primeira instância, um filme de sobrevivência. Seu protagonista é um gato preto que simplesmente está existindo numa boa, quando muito incomodado por “gangues” de cachorros. Isso até o estouro de uma manada anunciar o perigo enorme se aproximando rapidamente. Trata-se de uma inundação implacável que transforma radicalmente o ambiente de uma hora para outra. Até os terrenos mais altos são submersos, o que impõe desafios de vida e morte para o animalzinho terrestre e, ainda por cima, de pequeno porte. O que primeiro impressiona nessa animação é a qualidade técnica e a suntuosidade visual. Os cenários são lindíssimos e há uma evidente preocupação com a fidelidade, vide o nível de detalhes na representação do felino. Para quem já teve um bichano de estimação vai ficar mais fácil perceber a precisão na construção dos movimentos e comportamentos do personagem principal: as pupilas dilatando quando é necessário estreitar o foco e concentrar atenção; a atitude tipicamente independente e desconfiada; a forma como o gato utiliza as patas traseiras firmemente durante escaladas desafiadoras; o famoso “amassar pãozinho” como preparativo para o aconchego antes de dormir. Portanto, há a busca minuciosa pelo realismo nesse retrato do gatinho que precisa se adaptar logo se não quiser morrer. Porém, há também espaço à fábula.

Com um rico design sonoro, fundamental para engrandecer a jornada do gato, Flow não tem falas e evita antropomorfizar tanto os animais. Diferentemente de boa parte das animações que vieram na esteira dos sucessos da Pixar, essa produção letã atribui aos personagens características principalmente animais, ainda que neles haja ecos de humanidade. Isto fica claro à medida que o protagonista encontra outros desgarrados pelo caminho, com eles formando uma família em princípio à deriva na busca pela Eldorado impressa no horizonte como possibilidade de salvação. O gato corre sérios riscos, sobretudo nas várias vezes em que cai na água, ambiente pouco convidativo que significa a novidade com a qual não está acostumado. Por isso é linda a cena em que ele passa a sentir menos angústia quando submerso, sendo capaz de admirar a beleza dos peixes que podem se transformar em comida. Há nisso um aprendizado instintivo. Aos poucos, para além do princípio básico da sobrevivência, que o filme mantém até o seu encerramento, há outras coisas possíveis de ser capturadas nas entrelinhas. Uma delas é a constatação da onipotência da natureza e como determinadas situações podem ser vistas de modos opostos, a depender de quem se é. Uma inundação é trágica para animais terrestres, mas como é bem-vinda aos marinhos. Existe um ciclo traçado durante as aventuras dos navegantes.

Flow é aquele tipo de filme que pode servir, tranquilamente, como matéria-prima para espectadores ávidos por lições de vida e morais da história. Afinal de contas, na tentativa de sobreviver o gato constrói laços improváveis, aprende a trabalhar em equipe, doma a ansiedade e entende como se adaptar da melhor maneira possível ao meio, tendo atitudes positivas e negativas. Navegando rumo ao desconhecido na companhia da capivara dorminhoca, do lêmure acumulador, do cão mais empolgado do que deveria e da ave desgarrada, ele extrai de cada um desses amigos de jornada algo para si. Como nas grandes epopeias, o caminho é muito mais importante do que o destino. Voltando à coalização, ela sustenta a mensagem ecumênica do filme, principalmente a da valorização das amizades, uma vez que em algum momento da trama todos serão levados a abdicar de valores e outras coisas importantes para poder garantir que o grupo chegue vivo (onde quer que seja). O que torna esse longa mais bonito do que necessariamente sentimentalista é o modo como essas “lições” são preparadas e apresentadas, sem espaço para os excessos distorcerem melodramaticamente (do jeito errado) a beleza das descobertas. Gints Zilbalodis não se dedica a construir uma “moral da história”, mesmo que seja possível encontrar uma (várias, na verdade) se o público estiver necessariamente as procurando.

Deslumbrante pelo modo como desenha esse mundo em mutação, à medida que as águas reconfiguram a vida de todos, Flow é ora realista, ora propenso à fantasia. Alguns animais têm características ligeiramente diferentes das suas referências, haja vista o “monstro marinho”. Evidentemente inspirado nas baleias, ele tem atributos que o inserem num meio termo entre o factual e o poético. Esse universo novo ao qual o gato precisa desesperadamente se adequar para continuar vivendo é desprovido de gente, mas não da ideia da presença humana. Os personagens transitam por cenários com construções que denotam uma remota existência de homo sapiens por ali – a julgar pelas edificações grandiosas com evidentes marcas de abandono. Incluindo o que parecia ser um santuário felino, com direito a estátuas em tamanho real de gatinhos e uma versão gigantesca, daquelas erguidas para celebrar ícones e heróis. Portanto, podemos imaginar que essa terra tomada por animais foi antes o lar de pessoas obrigadas a deixar para trás prédios, monumentos, quinquilharias e embarcações funcionais. A intersecção entre humano e animal, passado e presente, anuncia que nem mesmo a espécie dominante da fauna terrestre tem garantida a sua perpetuação. Quem nos ensina um caminho possível é a capivara preguiçosa, o lêmure possessivo, o cãozinho agitado, a ave íntegra e o gatinho esperto.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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