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Crítica


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Sinopse

Elle, Lamina e Billy formam um coletivo especializado em produzir músicas a partir do som de alimentos sendo cortados, triturados, fritos e cozidos. Eles são selecionados para uma prestigiosa residência artística no Sonic Catering Institute, dirigido por Jan Stevens. Conforme desenvolve novas performances, o grupo enfrenta brigas internas por poder, além da pressão de Jan por mudanças, e da proximidade de um jornalista interessado em escrever sobre o trabalho do trio.

Crítica

Eis uma nova maneira de consumir alimentos: não pelo sabor, nem pela aparência, mas pelo som. Em Flux Gourmet (2022), os protagonistas realizam um serviço de “bufê sonoro”, picotando alimentos, então fritando-os, amassando-os e processando-os para explorar a sonoridade numa performance. O longa-metragem se situa num universo onde esta prática habitual não surpreende ninguém: o trio central, selecionado para uma residência artística, vence inúmeros concorrentes para a prestigiosa oportunidade. Os legumes e frutas escolhidos nunca serão comidos, resultando num purê indigesto de cor duvidosa. Interessa, aos heróis e ao filme, a variedade de estímulos obtida com pequenos microfones próximos das panelas e frigideiras. O texto recorda outra maneira de alterar quimicamente os alimentos, produzindo sons particulares: a digestão humana. Enquanto Elle (Fatma Mohamed), Billy (Asa Butterfield) e Lamina (Ariane Labed) transformam seus produtos com finalidade artística, o jornalista Stones (Makis Papadimitriou) o faz involuntariamente: o pobre sofre de dores gástricas profundas, além de flatulências intermináveis. O processo elaborado pelo trio do bufê sonoro poderia ser considerado arte, caso tratado desta maneira por instâncias legitimadoras do poder? O mesmo poderia ser dito do corpo humano? A discussão sobre o valor da intencionalidade na arte serve de ponto de partida para esta comédia.

Obviamente, os interesses vão além de uma reflexão filosófica. O cineasta Peter Strickland deseja confrontar a elegância e a grosseria, o erudito e o popular, ou ainda o cru e o cozido, nas palavras da antropologia. Por isso, o potencial estético da instituição caríssima, comandada por uma diretora excêntrica (Gwendoline Christie), será tão explorado quanto os gases de Stones, seu exame de fezes e as colonoscopias realizadas ao vivo, diante de uma plateia. O diretor se dedica a criar comidas nojentas e escatologias plasticamente aceitáveis, até que as fronteiras entre ambos se borrem — vide a performance com o corpo coberto de fezes (ou seria mousse de chocolate?), e os cortes de carne triturados no liquidificador (ou seriam pedaços humanos?). O horizonte final deste encontro será o canibalismo, mas antes disso, o filme se diverte com estímulos sofisticados justapostos a outros de natureza infantil, produzidos a partir da premissa da transformação/digestão artística — voltamos às fases oral e anal. Em tempos do ASMR, entretanto, é capaz que a surpresa decorrente destes sons de frituras, cozimentos e mastigações soe pouco fantástico — ou será o nosso mundo que se tornou mais fetichista e grosseiro? De qualquer modo, a obra concebe estas experiências visando a máxima reação do público, seja de repulsa ou curiosidade. Somos nós, sentados na sala de cinema, os verdadeiros espectadores deste happening gastronômico.

Aí reside um fator incômodo em Flux Gourmet, e nas produções anteriores do autor: a vontade deliberada de chocar, provocar escândalo e "viralizar". Trata-se de uma forma de cinema concebida para a era das redes sociais, com ideias rápidas e imagens explosivas em si próprias, ainda que retiradas do contexto. Ora, o resultado corre o risco de jamais atingir o teor de ultraje, nem de refinamento estético, prometido desde o início. A comédia acredita ser mais sagaz e profunda do que realmente é: no final, nenhuma canção do grupo possui qualquer apelo estético (somos privados de escutá-las em sua integralidade, sem interferência excessiva da montagem), ao passo que o processo de pesquisa do trio, motivo da permanência de três semanas no Sonic Catering Institute, é deixado em segundo lugar. A função exata de cada membro da banda, e sua relação profunda com a comida, se torna incompreensível. Strickland brinca com figurinos de rockstars e comportamentos de diva, ou seja, com a aparência de artistas, ao invés de demonstrar a mínima preocupação com a arte em si. O vegetarianismo do grupo soa fortuito, e a evolução técnica destes jovens durante o internato será nula. O frágil roteiro possui interesse apenas nas brigas e ciúmes decorrentes da convivência forçada, chegando a introduzir um romance abrupto entre Jan e Billy. Pode-se contra-argumentar: mas esta é apenas uma comédia, onde o absurdo se justifica pelo conceito estético! Ora, tamanha liberdade não implica num passe livre para a aleatoriedade e a falta de coerência interna.

Estruturalmente, o projeto se revela um caos: a subtrama do jornalista nunca se conecta com o dilema central, e a reportagem será esquecida ao longo dos dias; a presença do médico soa desnecessária; o quiproquó envolvendo um aparelho da banda é explorado em excesso. Passada a surpresa inicial da música alimentícia, com as primeiras apresentações marcadas por nudez, gritos, orgias e distorções eletromagnéticas, a narrativa se repete sem se desenvolver, girando em círculos. Talvez seja possível apontar, na emancipação de Billy e Lamina em relação a Elle, uma superação do Complexo de Édipo, ou ainda um estudo acerca de relacionamentos tóxicos. Entretanto, qualquer interpretação do tipo caberá ao espectador, numa atribuição externa de sentidos — o projeto evita fornecer chaves de leitura para estes caminhos em particular. O cineasta se contenta com o pequeno show de variedades onde a estranheza constitui uma finalidade em si própria. Strickland concentra seus esforços no conceito inovador e improvável, e a partir disso, realiza a obra com tanta atenção às imagens quanto desprezo pelos personagens que a compõem. Aos atores famosos e respeitados, resta a confiança na “visão do diretor” e a experiência da entrega a figuras atípicas para suas carreiras — quase um exercício teatral, ou uma comprovação de versatilidade. No entanto, o protagonista do filme será o autor, investindo em luzes e sons que chamem atenção frequente a si mesmo, à sua engenhosidade e senso de criação. Esta maneira vaidosa de se colocar no mundo nos diz muito mais de seu criador do que sobre a sociedade e as fronteiras da arte.

Filme visto no 72º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2022.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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