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Sinopse

Através de Brasil, Angola e Portugal, questiona-se a imigração e os fluxos migratórios em geral: o que leva uma pessoa a abandonar suas raízes? De que maneira ela é acolhida no novo país, e como pode preservar sua cultura numa nação diferente? Como questões étnicas, religiosas e de gênero impactam estes movimentos?

Crítica

Este documentário é movido por mais hipóteses do que imagens. O diretor Marcelo Luna tem bastante a dizer através de seu narrador em off: ele comenta que “O Brasil é a síntese do mundo, uma gigantesca mistura de raças”, sugere que “imigrantes não são apenas as pessoas, são também as culturas” enquanto discorre a respeito dos fluxos migratórios entre países de língua portuguesa. A sociologia e a história se impregnam de liberdade poética proveniente das metáforas imagéticas - em outras palavras, o autor dilui o rigor da apuração acadêmica no interior de uma abordagem livre onde fatos, impressões e sentimentos formam um gesto único. Na viagem através do Brasil, de Portugal e de Angola, o filme conversa amigavelmente com imigrantes que relatam suas vivências pessoais. Fala-se de raça, da sensação de pertencimento, de dificuldades linguísticas, e sobretudo da concepção ampla de que os territórios pertencem a todos os seres humanos, e que suas diferenças constituiriam, na verdade, a sua riqueza. Fluxos (2021) parte da defesa da convivência entre os povos para chegar, após testemunhos selecionados, na comprovação daquilo que pretendia mostrar. A obra exemplifica sua tese ao invés de oferecer um convite à reflexão e uma abertura aos diversos pontos de vista decorrentes do tema.

A construção estética permanece em segundo plano, refém da condução sonora do narrador e dos personagens. Na maioria dos casos, as cenas se resumem a uma ilustração daquilo que se escuta: após a menção à verticalização do Recife, o tilt num edifício luxuoso à beira-mar comprova a fala; após a sugestão de uma “Recife apressada e desigual”, o plano aéreo exibe os bairros desfavorecidos próximos de regiões privilegiadas. O autor elabora uma estrutura essencialmente descritiva, o famoso show and tell dos norte-americanos: mostra-se, e então se conta. Imagem e som se repetem, convergindo na tentativa de reforçar o valor da tese apresentada, um servindo de “prova" para o outro. Em paralelo, a restrição das principais ações à voz indireta sublinha o esforço pedagógico. O longa-metragem pretende não apenas convencer o espectador das virtudes da convivência entre opostos (valor moral), mas também ensiná-lo sobre nossas origens portuguesas e africanas, tanto pela colonização quanto pela escravidão (valor histórico). Com exceção de um historiador e arqueólogo, o filme evita conversar com especialistas, privilegiando pessoas comuns convivendo num país diferente do seu. Alguns depoimentos adquirem espaço desproporcional em relação aos demais: o chef de cozinha croata Cláudio Kovacic é privilegiado pela montagem em comparação com os colegas, já a câmera se aproxima demais de Roberto Silva no metrô, forçando o homem a fingir naturalidade apesar da presença incômoda do dispositivo ao seu lado.

Estas fragilidades se estendem ao som e à fotografia, sobretudo nos trechos consagrados às pessoas negras. Teria sido fundamental que a iluminação se concentrasse em seus rostos e expressões. Ora, o encontro com senegaleses e com vendedores ambulantes na praia mergulha estas pessoas numa sombra profunda, despersonalizando-os e lhes dando um tratamento menos humanizado do que as pessoas brancas (nestas sequências, a fotometragem prefere se focar nos detalhes dos objetos e nos detalhes ao fundo). As câmeras na mão tremem em excesso, e as conversas em espaços internos sofrem com a fraca captação do som direto. Na sequência dos amigos senegaleses, em especial, a câmera nunca sabe ao certo como se inserir no grupo fechado, onde enquadrar, em quem prestar atenção enquanto conversam entre si. Recursos ostensivamente estetizantes, a exemplo do filtro azul na abertura, são abandonados em seguida, quando o diretor adota a linguagem naturalista, para a qual a importância das falas se sobrepõe àquela da captação e à maneira de representar os entrevistados. Durante a integralidade da experiência, paira a impressão de que a imagem se submete ao som, beirando a aleatoriedade durante os inserts de anônimos “diferentes" em meio aos brasileiros "médios". Opta-se por perceber a diferença e sublinhá-la, sem acompanhar as pessoas em suas rotinas: o chef de cozinha permanece sentado num único enquadramento; o homem pernambucano judeu jamais é visto frequentando centros religiosos, e o passeio de Roberto Silva é encenado para a equipe. 

O uso excessivo de drones leva a outro questionamento que vai além deste projeto em particular. O barateamento deste recurso tem feito com que uma quantidade impressionante de documentários de baixo orçamento aposte nas imagens aéreas para efeito de poesia, contextualização e para reforçar o dito “valor de produção”. Ora, estas captações abertas demais transmitem a falta de seleção do olhar: a imagem se abre a tudo o que existe à sua frente, oferecendo sequências equivalentes e intercambiáveis. O posicionamento da direção se perde: um plano aéreo destes bairros específicos do Recife será muito semelhante àquele proposto por qualquer outro criador a partir dos mesmos espaços. Em sua segunda metade, Fluxos abusa destas tomadas impessoais e puramente descritivas - uma vez mais, precisamos esperar o esclarecimento do narrador para perceber o que a mise en scène pensa a respeito destes locais. Ora, o limite do quadro, a profundidade de campo, a duração do plano e a iluminação constituem os pincéis com os quais um cineasta pinta o mundo à sua maneira. A proliferação desordenada dos drones resulta num gesto curioso, pois os diretores abrem mão do controle intrínseco ao ato de criação para favorecer uma imagem genérica, talvez em busca da sonhada e impossível objetividade na arte. A equipe poderia ter privilegiado o investimento em estabilizadores de imagem e refletores, por exemplo.

Apesar destas questões, Fluxos se encerra com um discurso empático à diversidade geográfica, racial e sexual. Marcelo Luna possui a compreensão fundamental de que a história do povo brasileiro precisa ser compreendida em relação à colonização de Portugal e aos movimentos dos povos africanos, algo de suma importância em tempos anti-historicistas, quando parte da direita tenta reescrever os fatos. O diretor também traz a consciência preciosa de que um projeto deste porte necessita de poesia e leveza, ao invés de uma sucessão jornalística de dados, números e depoimentos em estúdio. O filme respira, seja pelo ritmo, seja pela articulação contemplativa da montagem - neste sentido, o conceito de “fluxo" se torna coeso com a estética adotada. Talvez algumas conclusões sejam simples demais (“No fim, a busca de todos é a mesma: felicidade, prosperidade…”), mas reforçam a decisão do autor em priorizar o conteúdo humano ao político e sociológico. É difícil dizer que os curtos testemunhos deem conta das especificidades inerentes à imigração, sem falar na escolha curiosa de personagens, que talvez não sejam os melhores representantes dos grupos em nome dos quais se expressam. Além disso, o salto entre imigração, tolerância religiosa com muçulmanos e judeus, e vida em Portugal se opera de maneira brusco. De todo modo, o autor se satisfaz com o olhar abrangente, externo, sobrevoando seu tema assim como os drones nas cidades escolhidas.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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