Crítica
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Sinopse
No ano de 2069, uma antiga canção faz um rei lembrar do tempo em que desejava ser bombeiro para salvar Portugal. Esse homem moribundo encontrou um amor inesperado nas fileiras dos combatentes de incêndios em seu país.
Crítica
Ao anunciar seu mais novo filme como uma “fantasia musical”, o cineasta João Pedro Rodrigues reivindica dupla emancipação das amarras formais da realidade. Afinal de contas, a fantasia e o musical são gêneros que têm por princípio essa libertação das engrenagens funcionais do real. E ela permite a construção de mundos simbólicos onde as leis e ordens da nossa natureza são relativizadas. Além do mais, a diegese cinematográfica possui legislaturas próprias que podem a desobrigar da obediência às regras do nosso cotidiano. Em Fogo-Fátuo o realizador português renega os mecanismos do real, mas conjura a História factual, sobretudo o passado colonialista de Portugal. Além disso, desenha uma utopia em que a monarquia será extinta. A decomposição da nobreza libera gases que fazem a sociedade portuguesa entrar em combustão e ser renovada. Esse suscinto e envolvente conto homoerótico começa no sugestivo ano de 2069, quando o corpo quase gelado do rei Alfredo (Joel Branco) jaz numa sala adornada apenas pelo quadro que retrata pessoas negras com nanismo vestidas de fidalgos – O Baile Nupcial, de José Conrado Roza, encomendado pela família real no fim do século 18 para mostrar as “exóticas curiosidades do Novo Mundo”. A breve discussão extracampo sobre a possibilidade de vender a pintura para custear o funeral demonstra a falência de uma monarquia destronada de sua aura superior. Em 2069 a realeza perde privilégios e pompa, tanto que um menino peida próximo ao moribundo.
Fogo-Fátuo é um filme evocativo, cujas imagens e tons estão sempre a querer dizer. Porém, isso não significa que João Pedro Rodrigues seja estritamente indireto, que personagens e situações não tenham implicações e significados claros. No entanto, há uma intenção figurada por trás de todas as palavras e gestos. É uma estratégia que o cineasta português gosta de utilizar para criar fábulas: se alimentar da realidade da qual aparentemente mantém distância pelo uso do encantamento e logo a regurgitar em forma de alegoria. O protagonista aqui é Alfredo (Mauro da Costa), príncipe das primeiras décadas do século 21 decidido a ser bombeiro para ajudar Portugal a combater as queimadas que crescem preocupando o país europeu. Representante da juventude aparentemente consciente da extensão dos problemas ambientais, e nisso distante dos pais preocupados apenas com a manutenção de privilégios reais, ele anuncia a intenção de ser soldado na ocasião marcada por uma teatralidade culminante no rompimento da quarta parede. Sua mãe, a rainha de palavras empostadas, a certa altura diz: “não vê que estamos sendo observados?”, se dirigindo à câmera e se referindo ao nosso olhar – tanto que fecha a porta e bloqueia a realeza da bisbilhotice. Novamente, o cineasta se liberta das limitações da realidade e utiliza os artifícios que o agradam. É outra referência à representação, uma celebração do cinema como arte que não deve se limitar às tentativas de reproduzir o real.
Mesmo sendo uma fábula nutrida pelo histórico colonialista de Portugal, Fogo-Fátuo também é um filme de amor. Alfredo chega ao corpo de bombeiros e precisa passar por um treinamento. Ele é colocado sob os cuidados de Afonso (André Cabral). E, assim como fizera a cineasta Claire Denis na obra-prima Bom Trabalho (1999), João Pedro Rodrigues se vale de um ambiente majoritariamente masculino e militarizado, neste caso a corporação dos bombeiros, para mostrar a virilidade como combustível de uma mobilizadora pulsão homoerótica. Antes mesmo de o romance entre os colegas de trabalho ser concretizado, há uma cena brilhante que sugere essa atmosfera de corpos masculinos apolíneos servindo à estilização do erotismo. É quando Alfredo anuncia ser estudante de História da Arte. Os novos parceiros colocam seu conhecimento à prova com recriações livres de obras clássicas que retratam bombeiros nas artes plásticas. De quebra, é novamente João Pedro Rodrigues enfatizando o poder da representação, da estratégia de recriar algo por meio de uma linguagem figurada a fim potencializá-lo. Isso se repete antes do primeiro beijo entre Alfredo e Afonso, quando eles teatralizam o treinamento de massagem cardíaca para chegar ao toque íntimo que os leva ao prazer. De modo consciente, Afonso monta o palco, cria a ambiência e se passa por donzela em perigo para atingir esse gozo.
Esse “donzelo em perigo” remete a uma figura dos contos de fadas, geralmente repletos de reis, rainhas, príncipes e princesas. A teia simbólica de Fogo-Fátuo é clara, simples e consistente. João Pedro Rodrigues não deseja codificar as relações entre ícones e seus significados, pelo contrário. Desse modo, o pinheiro real celebrado pela ode à amizade é evidentemente um objeto fálico crivado pelos personagens de características que se poderia atribuir a um pênis ereto. Por sua vez, a relação homoerótica e interracial significa a mudança de paradigmas que reflete de modo potente a substituição da subserviência à monarquia por uma admiração pela democracia. Aliás, sempre que um nobre quer atribuir negatividade a algo ele utiliza a palavra “republicano” como adjetivo pejorativo, demonstrando por meio da língua portuguesa o seu posicionamento ideológico. A dupla masturbação com pênis de borracha, o salvamento do donzelo de uma torre em chamas de mentirinha (com direito a gelo seco fazendo às vezes de fumaça), a prova em que Alfredo reconhece a vegetação portuguesa ao se deparar com diversos tipos de pênis e a dança sobre os amores no quartel são outros instantes em que João Pedro Rodrigues reafirma o seu compromisso de esgarçar a realidade com atitudes e signos artificiais. Ele investe no paradoxo para decodificar subjetividades, como o desejo, também para encarar elementos objetivos, como a história colonialista/escravagista de Portugal, e ainda especular sobre o futuro.
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