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Crítica


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Sinopse

Em sete histórias independentes, namorados e namoradas, pais e filhos, maridos e esposas brigam a respeito de temas como o ciúme, a morte, a ganância, a existência de Deus e o esoterismo. Aos poucos, cada um desses encontros atravessa alguma forma de violência.

Crítica

Diante deste filme, é clara a vontade do diretor Bence Fliegauf em fazer uma obra densa e intricada sobre a psicologia humana. Ao longo de sete histórias independentes, ele oferece calorosas disputas entre casais e familiares, versando sobre o luto, a vaidade, o ciúme, a vingança, a crença em Deus, a infidelidade, o esoterismo etc. Cada esquete se concentra em dois ou três personagens que iniciam os fragmentos conversando, e passam então a atacar. Os segmentos terminam em lágrimas, agressão ou alguma forma simbólica de violência. Forest: I See You Everywhere (2020) soa como uma compilação de sete melodramas, onde apenas o clímax de cada um foi extraído e costurado ao lado dos demais. Deste modo, testemunhamos os personagens se digladiarem sem conhecemos quem são, o que desejam, nem como chegaram ali. Os diálogos trazem algumas explicações, porém o espectador permanece incapaz de se identificar com estes anônimos. Testemunhamos as disputas domésticas na posição de voyeurs, ou de uma visita indesejada dentro da casa alheia. O sentimento de incômodo persiste da primeira à última cena.

Através desta leitura do caos familiar, o cineasta sugere que vivemos em tempos sombrios onde reina o individualismo. A argumentação possui fundamento, e seria pertinente caso justificada pela narrativa. Ora, o autor se contenta com a abordagem mais literal possível: as brigas explícitas e acessos de cólera. Nota-se não apenas a perversidade em resumir as pessoas ao ápice do descontrole (quando a racionalidade cede espaço à emoção), quanto a simplicidade do painel onde as histórias terminam por se repetir. Os personagens soam intercambiáveis, como se ocupassem o mesmo apartamento e estivessem gritando com as figuras de esquetes alheias. Pouco importa, afinal: o discurso alarmante sobre o estado das coisas carrega capacidade limitada de reflexão, evitando sugerir alguma tese quanto às origens ou consequências do problema. Ele se torna mero veículo retórico, estimando que as disputas possuam sentido em si mesmas. Muitos cineastas apostam na catarse enquanto sinônimo de verdade, acreditando que os atores se saem melhor quando gritam (vide Xavier Dolan e David O. Russell). No entanto, Fliegauf vai além, literalmente retirando de cena a possibilidade de silêncio, contemplação, metáfora ou ambiguidade.

A experiência se torna maçante num primeiro momento, e involuntariamente cômica em seguida. A seriedade sepulcral das histórias impede a autocrítica e o senso do ridículo. Namorados brigam disparando frases como “Dar a câmera para uma mulher é exatamente igual a dar o pau para ela!”, ao passo que todos os segmentos trazem a frase “Eu vejo você”, forçosamente introduzida para fazer referência ao título. A presença inesperada de um boneco no armário poderia resultar numa comovente representação do stress pós-traumático caso conhecêssemos o trauma em questão. Quando a revelação ocorre antes da construção que lhe serviria de base, o resultado se mostra apenas patético (no sentido original do pathos). A facilidade de um assassinato, a explicação de um acidente de carro através de um tablet, a discussão sobre um guru espiritual e a consciência intelectual de um garotinho ateu (“Deus é um psicopata maluco”) resultam improváveis. Fliegauf poderia observar estes exatos fragmentos pela perspectiva do teatro do absurdo, do grotesco ou de outra ferramenta de linguagem permitindo o distanciamento. No entanto, ele acredita estar oferecendo um pensamento profundo sobre a natureza humana.

Na ausência de uma conexão narrativa entre os episódios, eles se reúnem por meio da estética rígida: as sete histórias são conduzidas pela câmera tremida e os enquadramentos fechados em close-ups claustrofóbicos. A cada cinco minutos, a câmera desliza para as mãos dos personagens, sem razão aparente, antes de retornar às expressões faciais. Estes pais, filhos, namoradas e esposas são filmados em cores quentes e sugestões de chamas, como se ardesse no purgatório. Ora, em pleno ano de 2020, a utilização do estilo Dogma-95 soa ultrapassada, reforçando a artificialidade ao invés de sugerir realismo. A ausência de demarcação entre estes curtas-metragens, costurados por um simples corte de montagem, acentua a impressão de pertencerem a uma única novela dantesca sobre os vícios humanos. Os respiros entre histórias são inexistentes: mergulhamos de um conflito diretamente ao seguinte. Em paralelo, a montagem fornece no início de cada episódio alguma imagem do final, para que a conclusão retorne ao princípio de maneira cíclica. A repetição temática e estrutural converte Forest: I See You Everywhere num filme-hipnose.

Ao final, resta uma enésima demonstração do que se convencionou chamar entre os críticos de “cinema malvado”: um deleite diante do sofrimento dos personagens, desprovido de compaixão ou interesse pelas circunstâncias que levaram ao caos. O projeto se contenta em denunciar desumanidades através de um olhar moralista e acusador: é difícil pensar que Fliegauf manifeste carinho por estas figuras arrogantes, manipuladoras e detestáveis. Estamos distantes do niilismo enquanto ferramenta filosófica capaz de emancipar o homem: o filme privilegia o olhar cínico em oposição a “tudo isso que está aí”, passando um rolo compressor sobre a integralidade dos personagens. O olhar conformista e violento a respeito das interações humanas situa o diretor como superego castrador e pai autoritário. No que diz respeito à forma de comunicação, o húngaro representa a sociedade por meio do choque e do sensacionalismo. Assim, atinge o mesmo grau de compreensão política, social e psicológica dos programas policialescos da televisão, do tipo que aponta crimes e grita, com certo instinto de autossatisfação, que o mundo está perdido.

Filme visto online no 71º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em março de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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