Crítica
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Sinopse
Matilde, Cencio, Fulvio e Mario vivem como irmãos num circo romano nos anos 1943. Quando o dono do empreendimento desaparece misteriosamente, os quatro são deixados sozinhos numa cidade ocupada por nazistas.
Crítica
O tema do “outro diferente” já foi abordado pelo cinema de diversas maneiras. No entanto, a observação da intolerância diante desse “outro diferente” é algo recorrente nas produções de tons e pegadas distintas. Selecionado para a 8 ½ Festa do Cinema Italiano 2022, Freaks Out se passa durante a Segunda Guerra Mundial e explora o assunto num espaço híbrido entre fantasia, alegoria e citação de fatos. Os personagens principais são membros de uma trupe circense, figuras mambembes que atraem o público justamente porque possuem poderes que as distinguem numa paisagem marcada pelo ordinário. Fulvio (Claudio Santamaria) é o homem coberto de pelos, dono de uma força física descomunal; Mario (Giancarlo Martini) é o anão com capacidades eletromagnéticas; Cencio (Pietro Castellitto) é o albino capaz de controlar insetos; e Matilde (Aurora Giovinazzo) é a jovem que tenta a todo custo esconder uma natureza elétrica. Essa turma é chefiada por Israel (Giorgio Tirabassi), líder que não possui dons, mas que preza pela construção da atmosfera lúdica nos espetáculos da trupe. Aliás, é muito interessante (e bonita) a cena de apresentação desse desejo, com os notáveis exibindo capacidades enquanto o mestre de cerimônias se encarrega dos efeitos especiais que tornam aquela experiência ainda mais poética e interessante. Ali se borram as fronteiras entre o literal e o simbólico.
A outra camada de acesso ao “outro diferente” está nos vilões e nas vítimas. A aventura se passa na Itália ocupada pelos nazistas. Os alemães que seguiam cegamente Adolf Hitler são vistos perseguindo judeus, encarcerando pessoas com condições mentais/físicas diversas, ou seja, se transformando num emblema irrefutável da intolerância como arauto da morte. Ao realizar uma fantasia situada nesse período histórico, Gabriele Mainetti promove uma comunicação repleta de possibilidades entre o que extrapola os limites da realidade e os fatos históricos. E o realizador não esconde – pelo contrário, pois escancara – a vontade de fazer um longa-metragem capacitado a se comunicar com um público variado e amplo. E o que isso quer dizer? Que temos bem determinados os mocinhos e os bandidos, que os personagens não possuem ambivalências morais e éticas profundas e que os cenários pessoais e coletivos são muito delimitados e postos. A trama não situa os protagonistas como, essencialmente, vítimas dos olhares maledicentes dos demais. A isso, prefere deslocar levemente os homens e mulheres extraordinários do estatuto imposto aos personagens equivalentes de produções de referência, com as quais Freaks Out dialoga: O Gabinete do Dr. Caligari (1919), Monstros (1932), e O Homem Elefante (1980). Assim sendo, as “aberrações" aqui possuem clara vocação ao heroísmo.
Matilde é a pessoa com mais dilemas em meio à história com nazistas deliberadamente estereotipados, cenografia que reforça a ideia da fantasia e fotografia (assinada por Michele D'Attanasio) ora estilosa, ora afetada demais para permitir que as nuances se imponham por tanto tempo. A menina que tem evidentemente os poderes mais devastadores – e que, por isso, pode ser uma arma importante para derrotar os inimigos – reluta o quanto pode diante da necessidade de libertar o que ela própria chama de “maldição”. E o roteiro a cargo de Nicola Guaglianone e Gabriele Mainetti poderia lidar de modo menos superficial com essa hesitação. Sabemos que não se trata de “se” Matilde manifestará o seu dom adormecido, mas de “quando”, e esse suspense é tratado de modo banal. Simplesmente, ela é convencida depois da situação-limite em que percebe sua alternativa de utilizar os poderes somente para arrasar com os malfeitores nazistas. Essa simplicidade na resolução dos dramas atende à primazia da aventura, ao privilégio da construção gradativa de um heroísmo que, felizmente, carrega subtextos oportunos – sendo o principal deles, exatamente, a autoaceitação das diferenças. Sem tirar nem pôr, a turma de Matilde é análoga a da igualmente menina aventureira Dorothy, de O Mágico de Oz (1939). E nem era preciso um coadjuvante verbalizar isso para entendermos a referência.
Outro ponto positivo de Freaks Out é o vilão com altíssimo teor caricatural que Franz Rogowski constrói em cena. Mais acostumado aos dramas intimistas – como Em Trânsito (2019), Undine (2020) e Great Freedom (2021) –, o ator alemão sublinha os trejeitos, brinca com os exageros, enfim, cria um vilão típico que resvala de modo proposital no cartunesco. O oficial Franz tem seis dedos e o dom de enxergar o futuro sob efeito do éter. E essa habilidade proporciona algumas "intromissões" interessantes, vide os desenhos de controles de videogames e telefones celulares rompendo novamente o tecido do tempo cronológico do filme. Também há canções modernas, como "Creep", da banda Radiohead, e “Sweet Child of Mine”, do Guns N’Roses, sendo tocadas para a plateia de nazistas em êxtase com as novidades. A extensa sequência de encerramento é, como convém a boa parte das aventuras, uma catarse coletiva em que os hesitantes finalmente encontram seus caminhos, os mocinhos triunfam sobre os bandidos e a ordem é reestabelecida. O mais bonito aqui é a ênfase na capacidade do próprio cinema, senão de modificar literalmente a história, mas de oferecer a possibilidade de conjecturar a partir de elementos até mesmo extraordinários. A vitória dos justos, neste caso, é também a revanche dos judeus contra os nazistas, dos oprimidos ajudados pelos desajustados partisanos da resistência.
Filme assistido durante a 8½ Festa do Cinema Italiano, em agosto de 2022
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