Crítica
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Sinopse
Após ser atacada por um desconhecido, Millie descobre que trocou de corpo com o maníaco. Ela tem apenas um dia para recuperá-lo. O único problema é que agora Millie parece fisicamente com o assassino, que é alvo de uma caçada em toda a cidade, isso enquanto ele se parece com uma adolescente de 17 anos, prestes a ir à um baile de formatura.
Crítica
Desde a cena inicial, Freaky: No Corpo de um Assassino (2020) se assume enquanto sátira. As primeiras imagens, passadas numa “Quarta-feira 11”, fazem óbvia referência a Sexta-feira 13 (1980) e aos vilões clássicos dos slashers, com suas máscaras cobrindo o rosto. A sangrenta sequência de abertura exagera tanto no tom e na facilidade das mortes que reafirma sua dupla vocação: primeiro, de efetuar uma releitura afetuosa do horror clássico, pontuando todos os clichês do gênero, e segundo, traçar um panorama satírico do pensamento norte-americano. Caso se limitasse à brincadeira com o terror, talvez resultasse em algo como os títulos da saga Todo Mundo em Pânico (2000 - 2013). No entanto, os alvos de Christopher Landon são mais amplos: ele critica a família patriarcal, a estrutura de castas dos colégios, a ideologia por trás dos bailes de formatura etc. Para o cineasta, a figura de um grandalhão mascarado que sai esfaqueando as pessoas pelo simples prazer de fazê-lo é tão ridícula quanto uma jovem vestida de mascote executando a coreografia da equipe durante uma partida universitária. O diretor possui talento de cronista, tanto para perceber esses códigos quanto para sublinhá-los ao limite do ridículo.
Dentro deste contexto, a premissa da troca de corpos impressiona porque evita reforçar preconceitos sociais. Este subgênero do horror tem sido associado ao pensamento conservador, delimitando como um homem e uma mulher deveriam se comportar, de modo excludente, oposto e binário (em filmes como Se Eu Fosse Você, 2006 e Se Eu Fosse um Homem, 2017), como brancos e negros deveriam se portar (em Agathe Cléry, 2008) ou como uma geração deveria agir em contraste com outra (em Sexta-Feira Muito Louca, 2003, e De Repente 30, 2004). De qualquer modo, o cinema costuma se amparar de opostos presumidos, apenas para colocar cada um em seu devido lugar ao final (a garota fica felicíssima de voltar a agir como garota, já o garoto respira aliviado de encontrar sua masculinidade). Ora, nesta produção de terror, a troca não ocorre entre categorias antagônicas. Quando a adolescente Millie (Kathryn Newton) ocupa o corpo do Açougueiro (Vince Vaughn), e vice-versa, ele foge à imagem de fraco e ingênuo, já ela ultrapassa o estado de um grandalhão violento. Landon encontra uma maneira de fazer com que a fusão seja mais positiva do que desconfortável: a adolescente encontra uma estratégia para se aproximar do aluno por quem sempre foi apaixonada, e o assassino descobre alternativas para matar impunemente.
O tom as atuações é crucial neste caso: a opção mais óbvia aos criadores envolveria mostrar uma mulher coçando o saco, ou um homem colocando batom. Ora, a diversão da mudança de gêneros dura pouco, até porque a masculinidade não se torna sinônimo de força ou determinação, nem a feminilidade coincide com delicadeza ou fragilidade. Quando possuída pelo criminoso, Kathryn Newton encontra seu poder de sedução. A jovem atriz baixa o queixo, aperta o olhar, veste roupas justas e vermelhas e parte para o ataque. Já Vince Vaughn se permite correr de maneira desengonçada e se portar fora dos códigos da virilidade. Em outras palavras, a magia confere liberdade à dupla. Em consequência, o projeto pode ser lido como uma divertida aventura LGBT, ainda mais queer do que A Morte Te Dá Parabéns (2017), outro projeto sobre magias cíclicas, concebido pelo mesmo diretor. Existe um colega abertamente gay (algo que não constitui um conflito ao personagem), enquanto Millie se permite uma aproximação sensual com mulheres e o Açougueiro tasca um belo beijo num adolescente. A dissociação entre gênero e identidade, ou entre corpo e desejo, constitui uma homenagem singela a afetos fluidos. O projeto possui consciência deste fator, rindo de si próprio sem fazer chacota da nova versão dos personagens. O humor provém do absurdo das situações, ao invés da inversão de anatomias.
Enquanto exercício de horror, Freaky: No Corpo de um Assassino se desenvolve em curto-circuito: cada cena sangrenta se alterna com vinte minutos desprovidos de sangue, até a próxima morte interromper a calmaria. A escolha pela comédia de terror impede que se mantenha uma tensão constante: é difícil acreditar que Millie e seus amigos realmente corram perigo nas mãos do adversário. Em paralelo, os alvos dos assassinatos são óbvios: morrem aqueles personagens apresentados desde o princípio enquanto figuras irritantes e opressoras às minorias. Landon poderia explorar de modo mais profundo a carnificina provocada por um assassino em pele de adolescente virginal, no entanto, prefere o humor da inadequação à possível perversidade da troca de corpos e gêneros. Ao menos, o olhar preconceituoso quanto à transgeneridade e à homossexualidade desaparecem: somos lembrados constantemente das diversas constituições possíveis para além de homem ou mulher, algo dissociado do caráter dos personagens. A montagem se esforça para equilibrar os protagonistas com precisão cirúrgica: nem Millie, nem o Açougueiro monopolizam a narrativa, afinal, eles constituem metades de um mesmo herói/vilão.
Os ruídos nesta representação constituem a base de um humor de desconforto. Em última instância, Millie luta contra si própria, contra a parte de sua personalidade que deseja combater o bullying sofrido na escola. O vilão e a mocinha deixam de ser excludentes para se tornarem complementares – vide a inesperada cena final. Resta uma narrativa maliciosa onde as aparências enganam: desta vez, as meninas têm um orgasmo primeiro e abandonam os namorados querendo mais; os esportistas morrem empalados ou castrados, os gays e negros conseguem se impor face à regra que os coloca como primeiras vítimas dos slashers. O único policial é uma mulher, e a magia permitindo a troca de corpos evoca a responsabilidade dos Estados Unidos no extermínio de povos latino-americanos. Landon está longe de efetuar uma crítica contundente, porém se permite um primeiro passo: desconstruir a “naturalidade” destas organizações sociopolíticas através do estranhamento. Ainda há espaço para cenas de cinema muito bem construídas e dirigidas: apesar da fantasia kitsch da troca de corpos, o diretor constrói uma sequência belíssima onde o Açougueiro, no corpo de Millie, volta à escola, caminhando entre uma apresentação de líderes de torcida. O filme ultrapassa o simples prazer do deboche: existe uma verdadeira vontade de cinema por trás da diversão despretensiosa.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
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Bruno Carmelo | 7 |
Francisco Carbone | 8 |
Ailton Monteiro | 7 |
Chico Fireman | 5 |
MÉDIA | 6.8 |
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