Crítica
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Sinopse
Em Frevo Michiles, o grande compositor Jota Michiles passa a limpo sua carreira que promoveu uma revolução na música de Pernambuco. Selecionado para o 8ª Cine Jardim (2024).
Crítica
O documentário musical é um filão fértil no Brasil. Também pudera, afinal de contas o nosso país é riquíssimo em sons e ritmos regionais, logo repleto de fontes praticamente inesgotáveis de inspiração. Em Frevo Michiles, o cineasta Helder Lopes utiliza uma figura fundamental do frevo pernambucano para tirar uma radiografia afetuosa de alguém e do contexto, do indivíduo e do seu meio, da pessoa e do artista. Seu protagonista é Jota Michiles, aquele que alguns depoentes definem como verdadeiro divisor de águas nessa manifestação popular tão importante. Com seus indefectíveis óculos escuros e o boné virado para trás, o septuagenário compositor permite acesso à sua intimidade, relembra causos importantes para a construção de uma cena cultural repleta de singularidades e fala de sua trajetória pessoal como autor nordestino. Fugindo aos princípios meramente ilustrativos de boa parte dos documentários biográficos, o cineasta cria uma narrativa que não obedece a cronologia e nem privilegia a informação. O filme é uma homenagem reverente a esse homem do povo que transformou em prosa e verso a sua aguçada capacidade de observar poeticamente as ruas recifenses e a população local. E, a partir de Jota Michiles, Helder consegue estabelecer um bom panorama iniciático sobre essa manifestação da cultura popular pernambucana, ouvindo outros personagens e ainda valorizando uma tradição.
Frevo Michiles faz um recorte muito particular da vida do protagonista. Há citações à infância e à juventude de Jota Michelis, mas não como dispositivo para ilustrar resgates históricos. O tom dessa jornada memorialística é muito mais afetivo do que propriamente elucidativo. E isso fica evidente nas cenas em que o compositor faz um resumo do passado ao transitar pelas fotografias antigas marcadas pela implacável ação do tempo. A ênfase não está no que cada imagem representa factualmente, mas no que elas significam enquanto fragmentos de lembranças pessoais. Helder nunca dissocia arte e vida íntima, bem pelo contrário, pois ao entrelaçar essas duas camadas da existência e da obra de Jota Michiles ele deixa subentendido que as composições revelam o homem assim como a sua família. São vários os momentos em que vemos filhos e netos do protagonista seguindo a trilha artística aberta pelo patriarca conhecido em todos os cantos do Recife, celebrado em praça pública por nomes de alcance internacional. Da reverência do filho que dialoga de modo cerimonioso com a herança ao respeitar os arranjos originais à bem-vinda “petulância” do neto também cantor que dá uma roupagem melódica diferente às letras do avô imortalizadas no carnaval recifense. Ao se misturar com a família de Jota, a câmera valoriza o senso de continuidade, transformando Jota Michelis no que começou.
Jota Michelis não é simplesmente canonizado em Frevo Michelis, mas tampouco examinado com ares investigativos por Helder Lopes. Nada é muito aprofundado, mas isso nem chega a ser um problema, principalmente porque a estrutura narrativa é propositalmente fragmentada e concisa. O roteiro assinado por Helder Lopes e Paulo de Sá Vieira vai remontando à trajetória do protagonista por meio da costura eficiente dos estilhaços de uma existência em grande parte dedicada à cultura popular. Utilizando uma analogia meio óbvia, é como se eles apresentassem esse personagem fascinante por meio de um cordel no qual cada fração tem uma importância específica. Frevo MIchelis não reivindica para si a tarefa árdua de ser um tratado sobre o frevo e nem de esgotar os assuntos em torno de um de seus nomes mais celebrados. O longa-metragem é fruto de um artesanato consciente de suas limitações, disposto a investir energias na valorização das potências, deixando um pouco de lado as impossibilidades, ou melhor dizendo, aceitando-as como partes inerentes do fazer artístico. O resultado é um filme que nunca se aproxima de ser arrebatador, mas que cumpre com louvor a função de inserir Jota Michelis num contexto característico e fazer dele, ao mesmo tempo, sentinela e soldado, estrategista e combatente, artista observador e sujeito de ação. Tudo com sensibilidade e paixão pelo frevo.
Nos documentários musicais, as entrevistas são comuns. Normalmente, há muitas histórias de bastidores que ajudam a iluminar determinados personagens e/ou movimentos. Porém, alguns realizadores utilizam os testemunhos como muletas. Felizmente não é o que acontece em Frevo Michelis, pois Helder Lopes encara os depoimentos com a mesma afetuosidade dos vislumbres familiares e/ou da rotina de Jota Michiles. Assim, as falas de figuras artísticas proeminentes, tais como Alceu Valença, Getúlio Cavalcanti, Edson Rodrigues e Spok valem menos pelo conteúdo e mais pela intenção. Claro, é divertidíssimo saber em quais circunstâncias um cantor de projeção nacional como Alceu Valença conheceu Michiles e transformou algumas de suas composições em sucessos versados nos quatro cantos do Brasil. Porém, o mais relevante da lembrança é a admiração contida na referência ao passado, resultado da mescla entre saudade e consideração. Algo parecido acontece quando o protagonista apresenta ao filme a sua namorada cujo nome escapa até dos íntimos, pois a companheira é mais conhecida como Diabo Loiro, justamente, porque assim é dito numa canção inspirada nela. Menos do que o fato “o apelido significa mais que o nome” está a noção de o quanto a força da arte pode ressignificar até a identidade. Que bom ver um documentário musical com essa pegada, que não se conforma apenas em informar.
Filme visto por ocasião do 8ª Cine Jardim, em outubro de 2024.
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