Crítica
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Sinopse
Durante uma viagem de ônibus pela África Ocidental, quatro mulheres de regiões diferentes desenvolvem amizades enquanto debatem os desafios aos quais são submetidas diariamente.
Crítica
Fronteiras (2017) proporciona uma viagem bastante particular ao espectador. Inicialmente, a jornada se apresenta como um divertido road movie: uma comerciante novata efetua a longa trajetória de ônibus entre Senegal e Nigéria. Ela brinca com os companheiros de viagem e toma vento no rosto, enquanto a trilha sonora sugere uma aventura descompromissada. Os quiproquós são típicos das comédias agridoces: uma mulher muito gorda se espreme no banco de passageiros ao lado da protagonista, um homem sofre com flatulências ao longo da viagem. O ônibus quebra – passagem obrigatória de qualquer road movie – e as pessoas permanecem horas à beira da estrada, esperando pelo conserto. A travessia de seis dias se anuncia como um processo de pequenos empecilhos, porém grandes possibilidades de amizades e contato com pessoas de outros países. No entanto, as dificuldades começam a assumir um tom progressivamente grave. Primeiro, um ladrão invade o ônibus. Depois, há tentativas de assédio moral. Entram em cena abuso sexual, estupro, espancamento, morte. O feel good movie se transforma numa narrativa surpreendentemente amarga.
A diretora Apolline Traoré se mune de dois objetivos claros com este projeto: primeiro, desenhar as possibilidades de comunhão entre mulheres de países e línguas distintas, sem a necessidade de homens para lhes protegerem. Segundo, denunciar os maus-tratos a que são submetidas quando se deslocam sozinhas. Um objetivo ocupa a metade inicial, e o outro, a metade final do projeto. Assim, o espectador é lançado numa curiosa montanha russa de emoções, entre o otimismo ferrenho (duas mulheres brigam, mas se tornam amigas próximas na cena seguinte) e o pessimismo extremo (tudo o que pode dar errado nesta viagem, dará). À primeira vista, a ficção se assemelha a um panfleto sobre a cordialidade e malandragem do povo africano, algo com que os brasileiros poderiam facilmente se identificar. Aos poucos, no entanto, esta rara produção de Burkina Faso se converte na antítese de um panfleto turístico: é difícil qualquer espectador ter a vontade de colocar os pés na África ocidental depois do apanhado de tragédias. Ao menos, Traoré deixa claro a quem se destina a narrativa. A cineasta não busca a aprovação do olhar estrangeiro, e sim a comunicação com outras mulheres do Senegal, Burkina Faso, Nigéria, Togo, Gana e Guiné-Bissau. Há um forte sentimento de sororidade, ainda que pelo viés do discurso do medo.
Em termos de estrutura, o roteiro possui algumas características muito interessantes. A primeira delas seria a construção do painel de protagonistas: exceto por Amélie M’baye, presente desde as imagens iniciais, as demais amigas constituem personagens aleatórias da viagem, que demoram a entrar em cena. Trata-se de figuras apresentadas enquanto coadjuvantes, até permanecerem por uma, duas, três cenas, e então assumirem a liderança da narrativa. Os manuais de roteiro convencionais sugeririam que as quatro mulheres fossem apresentadas desde o começo (em paralelo, talvez), para que o espectador se afeiçoasse a cada uma delas, até serem reunidas por alguma reviravolta. Traoré, no entanto, opta pela agregação progressiva, quase microscópica, de novas amizades. Esta escolha ameniza a noção de destino, favorecendo as coincidências e o acaso. Elas não efetuam esta travessia para se encontrarem: assim como os caminhos se cruzam, poderiam cruzar o de muitas outras mulheres em situações semelhantes. A autora privilegia o sentimento de universalidade – todos são convidados a se identificarem com estes casos explícitos, mesmo maniqueístas, de abusos, corrupção policial e violência física – e de aleatoriedade, ou seja, isso poderia acontecer com qualquer um(a). O resultado, curiosamente, se revela ao mesmo tempo despojado e alarmista.
Por outro lado, Fronteiras transparece diversas fragilidades narrativas. O filme nunca explora o trajeto, ou seja, jamais trabalha bem as noções de espaço e de passagem de tempo. Em se tratando de uma viagem através de países tão diferentes, com línguas e costumes distintos, teria sido importante perceber as transformações de costumes, de cenário, de clima. Ora, as mulheres são filmadas dentro do ônibus, saindo apenas para um novo encontro com a polícia de imigração e a alfândega de cada país, onde são chantageadas e estupradas. Letreiros aparecem em tela com frequência, indicando em que país estamos, em que fronteira nos encontramos, e em qual dia da jornada. Sem tais explicações, sequer compreenderíamos de onde, nem para onde se deslocam estas mulheres. Além disso, nenhuma das quatro protagonistas adquire uma personalidade desenvolvida: sabemos do objetivo imediato de cada uma (compra de produtos, transporte de remédios), mas desconhecemos suas vidas para além da viagem. Em determinado momento, cada uma abre o coração e compartilha seu trauma mais profundo: a morte dos pais, a perda do marido etc. Para Traoré, complexidade emocional equivale à relação com a morte e/ou o luto. Não por acaso, um assassinato fará com que as viajantes descubram a real importância de suas jornadas.
O roteiro acena a questões importantes, jamais aprofundadas: a barreira linguística entre países vizinhos (pelo menos três línguas oficiais são pronunciadas na travessia), a questão religiosa (uma das mulheres foge ao perigo ao improvisar um traje muçulmano que lhe cobre o rosto), a relação das protagonistas com o sexo, o desejo, com seus corpos e seu futuro. O filme possui seus próprios tabus em relação à feminilidade, ainda que, rumo à conclusão, coloque na boca das protagonistas um esclarecimento de questões bastante evidentes até então. “Centenas de mulheres passam por isso todos os dias”, esclarece a personagem interpretada por Naky Sy Savané, antes de listar cada um dos abusos que o espectador acaba de ver. Assumindo a função de um professor paciente, o filme lista as violências inaceitáveis para que sejam percebidas enquanto tal. O didatismo simplifica um cenário sociopolítico complexo, no entanto, sublinha a decisão de se dirigir a mulheres que não necessariamente experimentem estes abusos cotidianos como algo contra o qual possam se rebelar. A porta de entrada cômica constitui uma maneira acessível de conduzir o espectador (africano, em especial) para uma discussão sobre temas que dificilmente abraçaria caso o projeto fosse anunciado como “um filme sobre assédio, estupro e perseguição contra mulheres”.
Em outras palavras, existe uma estratégia de comunicação na obra. Por isso, a filmagem discreta, com cores ocres, luzes naturais, trabalho simples e eficaz de som e montagem, sirvam para não distrair o espectador da discussão central. Amélie M’baye, Naky Sy Savané, Adizelou Sidi e Unwana Udobeong tornam-se veículos exemplares, com atuações um pouco mais afetadas do que de costume, para tornar mais claras as suas importantes mensagens a respeito da tolerância e da luta pelos direitos das mulheres. Talvez a situação em Burkina Faso seja muito diferente daquela nos países latino-americanos, mas não seria nada absurdo imaginar uma obra como Fronteiras sendo projetadas em escolas para a conscientização dos alunos, ou então em grupos de debate sobre direitos civis e instituições de proteção à mulher. Trata-se de uma obra pedagógica, mas não por qualquer erro de cálculo dos criadores: Traoré trabalha com um didatismo voluntário, mesmo orgulhoso. A simplificação do debate, no caso, se torna sua força e sua limitação.
Filme visto online no Cine África, em setembro de 2020.
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