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Sinopse

Quando uma epidemia de amnésia toma conta da sociedade, um homem de meia-idade é afetado pelo mal misterioso. Sem lembrar o próprio nome, a profissão ou o endereço de casa, ele é deixado sob os cuidados do governo, que elabora um plano para desenvolver novas identidades às vítimas.

Crítica

A premissa de Fruto da Memória (2020) soa feita sob medida para uma distopia: na Grécia, em período indeterminado, as pessoas começam a sofrer uma estranha pandemia de amnésia. Seja em casa, no trabalho ou no meio da rua, esquecem-se por completo de quem são, onde iriam, que profissão possuem. Elaborado durante a crise sanitária decorrente da Covid-19, o projeto parece aludir ao mal invisível e silencioso que tomou (e ainda toma) conta da população mundial. O esquecimento poderia aludir ao atual fenômeno político de revisão histórica e à recusa dos fatos, quando se pretende construir uma “nova realidade”, a partir de “fatos alternativos”. É exatamente esta alternativa que se oferece às vítimas da síndrome desconhecida: o ingresso num programa do governo que pretende oferecer uma identidade fabricada, preparando os indivíduos para a reinserção na sociedade. Há uma mistura de prisão, instituição psiquiátrica e conspiração governamental nos planos de reinserir os amnésicos em apartamentos idênticos, oferecer uma pequena quantia de dinheiro e lhes dar “tarefas" como sair na rua, andar de bicicleta, flertar com uma pessoa do sexo oposto. Existe um fator perverso na ideia de o Estado controlar a vida afetiva dos cidadãos.

Ora, o drama surpreende por evitar o caráter espetacular: as pessoas perdem suas lembranças às dezenas, no entanto, a vida se desenvolve naturalmente. Seria essa a verdadeira relação com a crise da Sars-Cov-2? No caso da ficção, jamais saberemos o que os representantes políticos pensam deste fenômeno, de onde saem as verbas para sustentar as vítimas, nem as pesquisas médicas efetuadas para descobrir as origens deste mal. Nosso protagonista, um sujeito silencioso e solitário (interpretado por Aris Servetalis), junta-se ao grupo dos afetados sem que o espectador tenha mais informações a respeito de seu passado. Em outras palavras, tanto ele quanto o público desconhecem sua vida anterior, enquanto o diretor lhe retira a expressividade pós-lapso de memória: o homem fica em silêncio, sustenta uma aparência neutra, manifesta-se em poucas oportunidades. Pelo visto, a epidemia lhe retirou também os desejos, as ambições, o temperamento. É difícil se identificar com o sujeito sobre o qual não se obtém qualquer informação, esvaziado de poder de reação face ao que lhe ocorre. O roteiro planta pequenos indícios aqui e acolá para uma reviravolta final, mas antes disso, o drama se desenvolve de forma fria e linear. Não parece haver carinho do filme por seu herói.

Em paralelo, as reações à tragédia soam estranhas, mesmo para quem vive no Brasil pandêmico onde o presidente despreza 600 mil mortes. O processo terapêutico oferecido aos esquecidos está longe de qualquer forma de medicina ou psicologia verossímil. Há “lições de casa” em excesso para pouca aula, ou ainda diversas tarefas sem explicação de seu propósito, nem consequências retiradas dos dados obtidos. Os personagens cumprem as ordens transmitidas por uma vida cassete para ocuparem o tempo, ao invés de reviverem a memória ou construírem lembranças novas. Outros cineastas gregos, a exemplo de Yorgos Lanthimos, utilizariam este ponto de partida para orquestrar uma comédia absurda, explicitando a distância com real e o caráter nocivo do sistema (caso de Alpes, 2011, e O Lagosta, 2015). Ora, Christos Nikou prefere uma abordagem plácida e linear, ao limite do trivial. A janela próxima do quadrado (o formato de imagem 1 : 1.33) não favorece os retratos, a impressão de claustrofobia, nem a dissociação do protagonista em relação ao meio. As cores levemente desbotadas e as roupas retrô apontam para um passado recente indefinido, que o autor prefere deixar em aberto. Retiram-se elementos de compreensão: a delimitação de psicologia, os espaços, o tempo.

Fruto da Memória sugere no material de divulgação que a vida do herói sofre uma guinada a partir do encontro com outra participante. Eles flertam, porque são indicados a fazê-lo, e depois se encontram, porque precisam de ajuda para tirar as fotos solicitadas pelo programa. Ora, estes retratos jamais servem de motor ao desenvolvimento de ambos, e a relação entre eles produz efeito morno, até ser descartada por completo quando o roteiro opta por outros caminhos. O longa-metragem se conduz de maneira inconsequente, niilista, apesar dos personagens: ele acredita que as pessoas são incapazes de empatia, que uma pandemia de esquecimento seria irreversível, os afetos se tornariam artificiais, e a nação se encaminharia à zumbificação. Ele se importa pouco com os sentimentos e sensações dos protagonistas, assim como o governo invisível o faz. Em posição distanciada, observando-os sem se envolver, o cineasta transparece sua identificação com as lideranças apáticas, ao invés das vítimas. Ele abandona suas figuras perturbadas num contexto onde não fazem falta a ninguém. Tornam-se corpos desalmados, objetificados, jogados de um lado para o outro conforme as conveniências do momento. Esta poderia constituir uma potente denúncia, se o diretor desejasse assim. No entanto, ele recalca a ira ao segundo plano, privilegiando o torpor generalizado.

Por este fator, o projeto impressiona mais pelo conceito e a audácia de ignorar uma recompensa emocional ao espectador do que pelo desenvolvimento narrativo. O escritor José Saramago sempre foi conhecido por partir de premissas fantásticas e, então, desenvolvê-las de modo realista. É isso que falta ao filme grego, apaixonado por seu distanciamento implacável, e um tanto arrogante em relação aos próprios personagens. Seria difícil avaliar as interpretações de Aris Servetalis e Anna Kalaitzidou pelo fato de se prestarem a um jogo de desafetação próximo do maquinal. Se pelo menos as imagens deslumbrassem por sua composição, pelas insinuações de luz, sombras, profundidade de campo e enquadramentos, o formalismo se equilibraria com o teor apático do jogo cênico (algo que ocorre com clareza no cinema de Aki Kaurismaki, por exemplo). Em seu primeiro longa-metragem, Nikou tateia o terreno da cinefilia e do cinema de festivais em busca de uma autoralidade que ainda precisa ser desenvolvida em termos de adequação da forma ao conteúdo. Há muitas ideias para pouca potência cinematográfica neste trabalho árido.

Filme visto online na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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Bruno Carmelo
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Chico Fireman
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MÉDIA
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