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Sinopse

A jovem Chloe cresceu com diversos problemas de saúde: arritmia cardíaca, diabete, asma, paralisia dos membros inferiores. Felizmente, ela sempre pôde contar com a dedicação integral de Diane, que abriu mão de sua vida pessoal para cuidar da filha e educá-la em casa. Conforme Chloe se aproxima da entrada na faculdade, ela começa a suspeitar que as escolhas da mãe nem sempre buscaram seu bem-estar.

Crítica

Fuja (2020) esclarece desde as primeiras cenas que existe algo sinistro rodeando o nascimento de Chloe e sua relação com Diane (Sarah Paulson). Quando assistimos à sobrevivência de um bebê recém-nascido com sérios problemas de saúde, a trilha sonora investe em música assustadora e cenários inexplicavelmente escuros dentro do hospital, típicos dos suspenses. Ora, este não deveria ser um momento de alívio? Anos depois, embora esta mãe explique inúmeras vezes suas boas intenções em relação à filha adolescente, sabemos pela direção, pelas atuações e pela casa novamente muito escura que existe algo perverso por trás de seus atos. O diretor Aneesh Chaganty abre mão da lenta transição do drama para o cinema de horror, com o espectador descobrindo progressivamente o caráter discutível da heroína. Ele prefere outro tipo de tensão, mais próxima dos filmes de sobrevivência: como uma garota paraplégica pode escapar ao controle da mãe obsessiva dentro deste lar-prisão? Neste sentido, o título original era ainda mais pertinente: “Corra”, nome infelizmente pego pela versão brasileira do ótimo filme de Jordan Peele, poucos anos antes. A ideia de “correr” seria fundamental para registrar a condição de uma garota sem o movimento das pernas.

O projeto constitui um exemplo claro de cinema comercial, no bom e no mau sentidos do termo. No aspecto positivo, pode-se dizer que se trata de uma obra coesa, de curta duração, apressada para tornar a situação de Chloe (Kiera Allen, atriz realmente cadeirante) claustrofóbica em menos de dez minutos. O cineasta não perde tempo com distrações: qualquer cena possui uma importância significativa na trajetória da garota, que começa a suspeitar da idoneidade da mãe com rapidez espantosa. O roteiro tira do caminho os vizinhos, amigos, familiares e casos amorosos para facilitar a dinâmica da opressão a dois: Chloe e Diane reinam sozinhas, cercadas por alguns figurantes e poucos personagens coadjuvantes dignos deste nome. Cada sequência é ágil e asfixiante, a exemplo da visita escondida à farmácia ou da escapada pela parte externa da casa. A câmera à altura dos olhos da garota paralisada desliza entre corredores da farmácia e do hospital, evitando contemplação, reflexão ou respiro. Descobrimos os planos de cada uma das mulheres conforme eles acontecem – afinal, visto que estão sozinhas e em lados opostos da disputa, com quem compartilhariam suas intenções?

No aspecto negativo, Fuja demonstra tamanha preocupação em agradar o espectador (sintoma clássico do cinema comercial) que abre mão da verossimilhança para abraçar escolhas artificiais, porém eficazes em termos de tensão. Aqui, informações relevantes possuem fácil acesso dentro de casa (qual criminoso preserva provas capazes de incriminá-lo?), hospitais se transformam num verdadeiro caos quando um único paciente entra em estado crítico, e medicamentos sigilosos são mantidos dentro de armários sem tranca. “Paciência”, parece dizer o diretor: como estas passagens demorariam demais para serem integradas de modo orgânico à narrativa, então façamos algumas concessões à lógica para acelerar o processo. O filme possui funcionamento análogo àquele dos slashers à moda antiga, quando não se esforçava em aprofundar personagens e relações, porque o público ia às salas escuras em busca de matança. Neste caso, esqueça o mundo lá fora, esqueça a dificuldade de explicar as relações com os médicos da garota, ou a maneira como certos objetos danosos são obtidos sem levantar suspeitas. Afinal, o espectador mergulha na trama para ver a batalha mortal de mãe contra filha.

Em defesa de Chaganty, é preciso reconhecer o talento e esmero do norte-americano. Ele constrói uma atmosfera densa da primeira à última cena, além de extrair boas prestações de suas atrizes: Sarah Paulson contém seus tiques diante de uma personagem que poderia se tornar caricatural, e a novata Kiera Allen transmite o vigor de jovem combativa. Junto à diretora de fotografia Hillary Spera, o autor demonstra atenção notável aos detalhes. Como bons admiradores dos suspenses hitchcockianos, eles usam a câmera para transmitir tudo de que o espectador precisa saber, sem explicações suplementares. O telefone com o fio cortado, a pesquisa sobre a natureza de um remédio e a descoberta de uma carta pelo correio proporcionam momentos ainda mais sufocantes porque focados em pequenos detalhes, sem diálogos. Spera filma o dedo apertando o botão do elevador, a mão segurando uma pílula, ou o rótulo de um frasco de comprimidos com tamanho esmero e durante tanto tempo (mérito da montagem) que somos levados a acreditar que todo e qualquer movimento constitui um sinal de perigo. Chaganty surpreende pelo volume de conflitos desenvolvidos e concluídos sem uma fala sequer. A cena da janela, por exemplo, comprova a astúcia da direção: um rápido travelling à esquerda nos revela exatamente os planos da garota.

A narrativa se conclui de maneira tão funcional quanto previsível. O diretor constrói noventa minutos de tensão acelerada, dedicados a uma história desgastada pela proximidade excessiva com Louca Obsessão (1990), Mamãe Morta e Querida (2017), o consequente The Act (2019), e mesmo com o genérico Remédio Amargo (2020), representante da nova leva de reciclagem do conceito original. O filme oferece pouca discussão ao tema das maternidades monstruosas para além do que tantos títulos, inclusive de décadas atrás (Psicose, 1960, se mantém ao horizonte), já fizeram com maior sucesso. Entretanto, aposta no meio-termo fundamental entre o cinema de alcance amplo e o cinema que acredita no valor das imagens e na inteligência do espectador, evitando reviravoltas absurdas ou explicações didáticas. Trata-se de uma obra capaz de deixar questões subentendidas (as cicatrizes nas costas, a ausência do pai), construída em torno de uma heroína autônoma e inteligente, com o respeito de escolher uma ótima atriz deficiente para o papel principal. Assim como em Buscando... (2018), Chaganty se mostra perfeitamente sintonizado com as demandas comerciais, cinematográficas e de representatividade dos tempos contemporâneos, convertendo-se num dos diretores mais interessantes da indústria atual.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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