Crítica
Leitores
Sinopse
Crítica
Qual seria, exatamente, o ‘fundo do poço’ ao qual o título nacional desse filme faz referência? Difícil dizer, pois são diversos os momentos de constrangimento, seja entre os personagens, como também no que diz respeito à audiência, cada vez mais perdida à medida que a trama avança rumo a lugar nenhum, tendo partido do absoluto nada. É de se esperar, em nome de uma eventual boa fé, que não seja relativo ao drama central vivido pelo protagonista, um homem que tem pela frente duas grandes questões com as quais lidar: (1) a separação da esposa e filhos, motivada por, enfim, ter tomado coragem de assumir a própria homossexualidade e, para deixar o quadro ainda mais trágico, (2) a recente descoberta de um tumor que lhe dá menos de um mês de vida. Há de se imaginar que, frente à uma situação tão séria quanto essa, só mesmo rindo para não enlouquecer. Mas essa, por mais que pareça, não é uma comédia besteirol. Fundo do Poço, de Rightor Doyle, é apenas sem noção.
Gary é um homem reprimido. É o tipo de cara que levou uma vida de fachada por anos por simplesmente não ter conseguido ser verdadeiro consigo, quem dirá com aqueles que, de fato, amava. E que fique claro: ele amou Patty, a ex-esposa, assim como também nutre um sentimento imensurável pelos filhos, Raymond e Mitchell. O mundo, afinal, não é apenas preto e branco. Cada vez mais as pessoas estão acordando para o fato que há uma infinidade de tons de cinza entre um extremo e outro. Gary, portanto, é bissexual. Isso sempre soube. Só que acreditava ser possível enterrar em si uma parte importante da sua identidade, permitindo que apenas um outro lado fosse visto. Agora, ao descobrir que seu tempo de vida é limitado, ao invés de desistir de vez e abandonar qualquer pretensão de mudança, finalmente decidiu fazer algo por ele mesmo, antes de colocar os outros como prioridade, e optou por seguir caminho contrário: ao invés da dissimulação, assumiu-se como é de fato, para qualquer um que por isso se interesse. Isso não significa mudar por completo. Trata-se, apenas, de aceitar todas as suas facetas. Nada disso, no entanto, está no filme. Para os realizadores, importante mesmo é uma boa punheta.
Sem deixar de ser quem sempre foi, Gary agora, ao menos, está se permitindo descobrir prazeres que até então lhes eram proibidos. Como, por exemplo, estar de forma mais íntima com um homem. Quando a história começa, ele se prepara para receber uma massagem de Cameron. Mas o rapaz não é, necessariamente, um massagista. Está mais para um profissional do sexo, ou quase isso, preocupado menos com os óleos e cremes ou movimentos circulares e mais com o “final feliz” que o cliente aguarda com tanta ansiedade. Deveria ser uma transação comercial apenas, portanto. Um paga, o outro fornece o serviço, e questão resolvida. Mas não foi bem assim que as coisas se sucederam. Primeiro, porque se assim fosse, o filme acabaria em 10 minutos – ou menos. Segundo, porque os roteiristas Phoebe Fisher e Lukas Gage – sim, o ator e intérprete de Cameron – não têm muita ideia do que estão fazendo. E assim, passam a enfileirar uma situação mais ridícula do que a outra em sequência, como se o absurdo, por si só, fosse desculpa para essa busca desesperada por um humor que nunca se faz presente.
Ambos estreantes na função, Fisher e Gage deixam claro ser esse um projeto de apresentação, uma experiência, algo do tipo “cartão de visitas”, para mostrar que podem ser mais do que meros rostinhos bonitos. Como se, hoje em dia, ser ‘apenas’ ator não fosse mais suficiente. Apesar de ter chamado atenção em séries como The White Lotus (2021) e Euphoria (2019), Lukas Gage fez mais barulho na imprensa nos últimos tempos por causa do casamento de meses com o cabeleireiro Chris Appleton do que por seus trabalhos recentes, como o remake Matador de Aluguel (2024) ou o seriado Garotos Detetives Mortos (2024). Ainda assim, consegue imprimir algum tipo de carisma em Cam, uma figura que simplesmente não consegue respirar e ouvir o que os outros estão lhe dizendo. Isso, se ajuda na sua construção, por outro lado prejudica qualquer sintonia com Zachary Quinto, que aparece como Gary. Longe do vilão que viveu em Heroes (2006-2010) ou do alienígena Spock de Star Trek, ele acaba eclipsado pelo colega de elenco e sua personalidade exaustiva e incansável. Os dois não funcionam como casal e nem como dois homens tentando se ajudar diante de uma morte acidental, um necrófilo vindo do submundo da dark web ou mesmo uma revendedora de Avon. Eles convencem como gays desorientados que precisam se encontrar, no entanto. O que seria o mínimo a se esperar de ambos, afinal.
Rightor Doyle foi responsável pela microssérie Amizade Dolorida (2018-2021), e estreia no cinema com este Fundo do Poço, deixando claro que, quando se acredita não ter mais para onde ir, sempre é possível cavar mais um pouco, tornando ainda mais funda a própria desgraça. Distribuindo constrangimentos ao longo de 90 minutos – o pior é a presença da geralmente excelente Judith Light, subaproveitada e sem orientação – é difícil discernir o que tanto quem escreveu, quanto aquele que estava no comando, queriam dizer com tamanha presepada – se é que essa turma tinha mesmo algo a ser dito, visto o conjunto que tiveram coragem de apresentar. Sem propor uma reflexão mais elaborada a respeito da finitude do ser humano, a necessidade da auto-aceitação ou a homofobia internalizada nos próprios homossexuais incapazes de saírem do armário, o filme falha também como proposta leve e despreocupada, agrupando piadas desgastadas (mais uma sequência de personagens drogados? Sério?) e ações que parecem radicais, apenas para serem contornadas – e novamente replicadas – minutos depois. Não há consequência e nem impacto. E mesmo o final, pretensamente bonito, é tão descabido que abre mão de qualquer boa intenção. Pois dessas, como bem se sabe, o inferno está cheio.
Últimos artigos deRobledo Milani (Ver Tudo)
- Herege - 21 de novembro de 2024
- Retrato de um Certo Oriente - 21 de novembro de 2024
- Cuckoo - 17 de novembro de 2024
Deixe um comentário