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Sinopse

Kid é um jovem que ganha a vida em um clube de luta clandestino. Usando uma máscara de gorila, ele é brutalmente espancado todas as noites por lutadores mais populares. Após anos de raiva contida e vida dura, Kid encontra uma maneira de se infiltrar na elite da cidade. À medida que seu trauma de infância ressurge, ele não mede esforços para acertar as contas com os homens da alta sociedade que tiraram o pouco que ele tinha.

Crítica

A estreia de Dev Patel na direção de longas-metragens é um projeto autoral. A história é dele e o roteiro foi assinado em parceria com Paul Angunawela e John Collee. Além disso, Patel interpreta o protagonista, Kid, jovem que ganha a vida em clubes clandestinos de luta sem regras no submundo de Mumbai. Membro da camada mais pobre da população, ele decide se infiltrar na elite da cidade para colocar em prática um plano de vingança. Trata-se de uma descida ao inferno na companhia desse personagem que está tentando colocar ordem num mundo desigual por meio da violência, assim devolvendo aos seus algozes o troco de sua miséria na mesma moeda. As conexões com os filmes da saga Johh Wick são claras, sobretudo pelo modo como a ação é articulada: sempre com ênfase na brutalidade e na intensidade dos movimentos. Aliás, num momento da trama alguém menciona que certa pistola é apelidada de John Wick porque aparece nas produções estreladas por Keanu Reeves. No entanto, se compararmos os resultados, há um abismo enorme entre a estilização da selvageria que atinge um nível simbólico por seu paroxismo nos longas de John Wick e as tentativas nem sempre bem-sucedidas de fazer algo parecido nessa trama ambientada na capital indiana. Dev Patel até tenta elevar a bestialidade ao patamar de expressão extremada dos corpos exauridos pelas explorações. Tenta, mas em vão.

Kid cria um plano para se infiltrar nos intestinos da elite econômica que detém o poder da cidade marcada pela desigualdade, ricaços que rebaixam a polícia do nível da segurança privada de privilegiados. E essa estratégia de subir gradativamente na estrutura da organização, pelo menos ao ponto de ter acesso a pessoas das quais Kid pretende se vingar, é apresentada de maneira displicente, com o protagonista galgando degraus menos por mérito ou inteligência, mais porque é seu destino ir à desforra. Patel associa a jornada desse herói improvável que deseja derramar o sangue dos inimigos com a lenda de Hanumam, ser musculoso com cabeça de macaco que no hinduísmo representa valentia, altruísmo e devoção. Talvez por não acreditar na perspicácia e na memória do espectador, o diretor Dev Patel insiste na repetição dessa conexão entre homem e lenda, recorrendo a rimas visuais para evitar que alguém perca de vista essas semelhanças. Perdedor nos ringues de luta utilizado uma máscara de macaco, Kid carrega outros itens clichês desse tipo de personagem que ascende no submundo para destruir os poderosos, como a preocupação com uma jovem prostituta a serviço de homens poderosos. Outra vez numa aproximação escancarada (e brega), vemos Kid olhando a concubina enquanto toca “Roxanne”, canção do The Police que fala do homem tentando convencer a sua amada a não se prostituir.

Se ao menos Patel demonstrasse consciência da utilização desses lugares comuns e fizesse disso um atributo de linguagem – exatamente como acontece nos filmes da saga John Wick –, Fúria Primitiva não pareceria tanto uma tentativa bem intencionada, mas de execução frágil. Porém, talvez o ponto mais problemático desse debute agitado que teve problemas orçamentários (algumas cenas foram filmadas com Iphones e GoPros) é justamente a sua linguagem visual. Novamente recorrendo à comparação, ao contrário do que acontece com maestria nos filmes estrelados pelo assassino interpretado por Keanu Reeves, as coreografias de luta aqui não são valorizadas. A decupagem (divisão das cenas em planos) é excessivamente fragmentada e privilegia imagens fotografadas num breu negativamente angustiante. Em vários momentos, inclusive em uns de picos emocionais, somos privados de uma percepção de espaço e tempo por conta da montagem frenética assinada por Joe Galdo, Dávid Jancsó e Tim Murrell que costura fragmentos com deficiência de dados e substância dramática. Será que podemos colocar na conta da emoção da estreia essa construção estética calcada em pressa, planos escuros com pouca informação e numa rapidez que muitas vezes sabota as emoções? Dev Patel mira numa leitura maneirista dos filmes de ação e acaba acertado numa reprodução de chavões sem graça.

A brutalidade em Fúria Primitiva é uma moeda (re)corrente. Como Dev Patel não valoriza os movimentos, sejam os de luta ou mesmo os amorosos, com a sua câmera ansiosa, tudo o que diz respeito aos corpos se torna protocolar e frio. Amando ou lutando, os personagens do longa parecem automatizados por uma programação prévia, não orientados por emoções. Abrindo um pouco mais o foco para perceber o contexto no qual Kid está inserido, Patel aponta um líder religioso como o principal vilão do filme, principalmente por seu endosso a um partido político de tendências extremistas que promete endurecer as coisas às maiorias minorizadas. Até mesmo pela importância desse aspecto político, é uma pena que o diretor Patel não consiga transformar a insurreição das transexuais num movimento simbólico potente o suficiente. Assim como Kid, elas têm corpos exauridos por explorações, então faria todo sentido que um levante contra os seus algozes agressivos representasse uma oportunidade para iluminar os anseios vingativos do protagonista e sua representatividade como eleito dos humilhados. Aliás, todo o bloco com as hijras (conhecidas como o terceiro gênero na Índia) poderia ter bem mais impacto no filme, afinal de contas são elas que colocam Kid em condições físicas e espirituais para encarar o mal. O resultado é uma estreia que tenta ser exuberante e estilosa, mas que acaba sendo cansativa.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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