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Sinopse

Influenciada por um passado de perseguições, marcado pela necessidade de lutar para sobreviver, a motofretista Joana não consegue ignorar quando alguém está passando por problemas. No entanto, depois de desmantelar um esquema de trabalho escravo, ela e toda a sua família se tornam alvo de uma organização criminosa.

Crítica

Durante muito tempo a ação foi um terreno cinematográfico predominantemente masculino. Sobretudo os filmes norte-americanos perpetuaram homens cheios de habilidades especiais fazendo de tudo (inclusive rompendo os limites da lei) para salvar o dia. Dentro desse espectro, temos os casos do tipo “exército de um homem só” (Rambo, Braddock e cia), os de especialistas em artes marciais (Jean-Claude Van Damme reinando soberano entre os anos 1980 e 1990), e os de vingadores implacáveis (Steven Seagal e, ultimamente, Liam Neeson). Isso para citar apenas alguns exemplos pontuais de uma longa e variada tradição. Com o crescimento da reivindicação feminina por maior representatividade em todas as áreas possíveis (sociais, artísticas, trabalhistas, políticas, etc.), o gênero se viu de certa forma renovado por mulheres ocupando esse espaço antes estritamente orientado por torrentes de testosterona. Charlize Theron sobressaiu recentemente vivendo a protagonista de Atômica (2017) e estabelecendo um novo horizonte para a saga Mad Max em Mad Max: Estrada da Fúria (2015). No entanto, a protagonista deste Garota da Moto parece se reportar mais à personagem de Uma Thurman em Kill Bill (principalmente nas cenas de motocicleta) e à Lisbeth Salander da saga Millenium (pela forma de se vestir e o comportamento taciturno). Ela se vira e odeia todas as injustiças.

Garota da Moto é um spin-off da série de TV veiculada inicialmente no SBT. No entanto, provavelmente para atender a certas lógicas de mercado, o elenco desse derivado ganhou nomes mais conhecidos. Maria Casadevall assumiu nas telonas o papel de Joana, a motofretista que teve de aprender artes marciais, entre outras táticas de defesa, para garantir a sua sobrevivência e a do seu filho, Nico (Kevin Vechiatto). A narração que inaugura o filme, bem no estilo “essa sou eu, essa é minha sina”, oferece um sucinto contexto a quem não está familiarizado com a personagem. Mesmo que Joana faça questão de reafirmar que não é uma super-heroína, o cineasta Luís Pinheiro a aborda segundo a sua disposição quase camicase de se colocar em risco se isso significar a proteção da vida de algum inocente. Tudo é bastante estilizado visualmente (com frequência, até demais). O quartel general da empresa de motoboys parece mais uma casa noturna daquelas que customizam a decadência/sujeira/oxidação a fim de transformar esses elementos em exotismo para consumo das classes média/altas. Da mesma forma, a casa da protagonista é um prédio com a faixada toda pichada, mas que aparenta ter sido cuidadosamente preparada para emanar uma aura descolada. Isso faz parte de um projeto estético bem definido que é corroborado pelos ângulos enviesados e as lentes que deformam a imagem.

Joana não é uma figura complexa (embora queira parecer), estando mais para uma justiceira que valida seus atos por meio do seu passado de vítima. O roteiro de David França Mendes não dá tempo para os dilemas e os desafios cotidianos dela decantarem e evoluírem. Circunstâncias como a violência do filho na escola, o interesse romântico do colega, a dificuldade do pai para encontrar espaço junto à filha, as negociações com a amiga policial, entre outras, têm pouca espessura dramática. Isso acontece em virtude da falta de atenção aos personagens, pois o filme parece bem mais motivado pela intriga policial. Porém, essa produção não é bem-sucedida nem no que diz respeito à dinâmica do banditismo na qual a protagonista se mete. Naruna Costa e Duda Nagle ocupam lugares arquetípicos, reprisando o que já vimos milhares de vezes no cinema: ela é a policial que serve como elo legal à mocinha; ele é o chefe encarregado, mas que não precisa de mais que duas frases para entregar o fato de desempenhar um papel duplo na história. Luís Pinheiro adere voluntariamente a vários lugares comuns (quanto ao enredo e à forma de desenvolvê-lo), não injetando personalidade nessa gente e nas situações que, assim, se tornam artificiais. Além de genérico, o resultado se afoga nos excessos da estilização gourmet e na escassez de veemência quanto ao panorama humano desenhado em meio às lutas.

Como exemplar de ação, Garota da Moto comete o pecado de não ter vigor. E isso acontece em grande parte por conta das escolhas da direção ao registrar os embates físicos. Luís Pinheiro opta por uma decupagem estranha ao gênero, já que “picota” as cenas e assim evita enfatizar as proezas físicas. Quase não temos uma tomada aberta quando Maria Casadevall investe corajosamente contra os bandidos, pois a montagem tenta falsear a intensidade ao agrupar uma sucessão burocrática de planos-detalhe. E essa opção minimiza a potência das brigas. Para efeito de comparação, o cinema de ação guarda várias semelhanças com o musical. E uma das graças de assistir a longas que contêm números de pessoas cantando e dançando é poder testemunhar a façanha dos passos sincronizados, contemplar a coreografia e obter uma imagem ampla desse bailado conjunto. Não é tão diferente quando estamos diante de uma batalha e/ou briga como as frequentes de Joana. Mas, aqui o realizador tenta produzir a voltagem/tensão desses momentos na montagem. Então, em vez de assistirmos à Joana lutando para valer com capangas e mandachuvas, somos apresentados a uma saraivada de pequenos relances de movimentos específicos (detalhe de um soco + revide + movimento de preparação + semblante fechado + reação de um espectador + novo soco + chute + etc.). Esse fracionamento tira qualquer energia dos duelos e reafirma as dificuldades do projeto para atender a uma tradição norte-americana, evidente fonte de inspiração que nesta produção não é sequer repensada para o nosso cenário.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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