Crítica
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Sinopse
Uma jovem de quatorze anos de idade tem que trabalhar por uma semana como parte de um projeto escolar. Por isso, sua mãe arranja um estágio para a menina na companhia de seguros onde trabalha como executiva júnior. Porém, enquanto re-organiza um armário de armazenamento, ela descobre alguns segredos desagradáveis que a empresa mantém escondido e que podem envolver sua mãe.
Crítica
Assim como em Copacabana (2010), provavelmente seu mais notório longa lançado no Brasil, as atribulações na relação entre mãe e filha se encontram na essência de A Garota do Armário, novo trabalho do cineasta francês Marc Fitoussi. A trama gira em torno de Anouk (Jeanne Jestin), jovem de 14 anos que precisa realizar um estágio profissional obrigatório de uma semana como parte de seu currículo escolar. Após perder a desejada chance de estagiar em uma emissora de TV, quando um seriado é cancelado de modo inesperado, e rejeitar a proposta de trabalhar com o pai (Grégoire Ludig) em sua loja de vinhos, Anouk parte para a última solução possível: completar a tarefa na companhia de seguros onde sua mãe, Cyrielle (Émilie Dequenne), exerce o cargo de executiva júnior.
Em meio ao tédio da única atividade que lhe é atribuída por suas superiores pouco simpáticas, organizar um armário de arquivos, a garota toma conhecimento do caso de Nadia (Sabrina Ouazani), uma imigrante marroquina, mãe de dois filhos, que certo dia surge na empresa contestando o fato de o pagamento do seguro de vida de seu falecido companheiro ter sido rejeitado. Comovida pelo fato, Anouk inicia uma investigação que leva à descoberta de operações ilegais da seguradora e podem envolver, inclusive, sua própria mãe. Tendo a adolescente como figura central, Fitoussi reduz a faixa etária do conflito de gerações, na comparação com o citado Copacabana, retratando as agruras de um período marcante de transição, o dos primeiros contatos com o universo adulto. Um processo de amadurecimento acelerado que reflete a própria trajetória de Cyrielle, obrigada a abdicar de desejos da juventude, como cursar a faculdade, devido à gravidez precoce.
Sob a fachada de normalidade do cotidiano de classe média das protagonistas, aos poucos, as rupturas começam a ser reveladas. Enquanto a tradução nacional do título – referenciando a situação vivida pela menina no estágio e citada literalmente em um momento específico da projeção – se atém ao filtro narrativo do olhar de Anouk, o título original – Maman a tort (Mamãe está errada, em tradução livre), já denota o dilema principal explorado por Fitoussi. Pois, dentro do choque com a realidade das contradições do mundo de “gente grande”, o que termina por exercer o maior impacto sobre Anouk é a aproximação com uma faceta, até então desconhecida, de sua mãe. Algo que altera a percepção sobre uma imagem materna idealizada, gerando o confronto, a contestação e, posteriormente, o estreitamento dos laços.
A esse drama íntimo, Fitoussi adiciona um elemento de denúncia a respeito da mesquinhez e da corrupção presente no meio das grandes corporações, bem como uma crítica aos valores da sociedade contemporânea – da obsessão pelo trabalho, pelo alcance de metas e pelo lucro a qualquer custo. Tal fator, em determinados momentos, parece impor ao longa um tom mais grave, mas que termina sempre suavizado pelo cineasta, reconduzindo a narrativa ao terreno de leveza típico de sua obra. Essa oscilação se faz presente também na composição de Anouk, com muitas de suas ações – como se mostrar capaz de desmantelar por conta própria um esquema corporativo fraudulento – soando forçadas e contrastando com sua inocência ainda latente. Felizmente, as passagens criadas para ressaltar essa pureza, como os diálogos com a melhor amiga, restauram a veracidade na construção da personagem, acentuada pela naturalidade e desenvoltura da encantadora Jestin no papel.
A mesma qualidade dramática é encontrada na interpretação de Émilie Dequenne – revelada no premiado Rosetta (1999), dos irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne – que encarna as fragilidades e ambiguidades de Cyrielle, deixando transparecer todo o peso carregado por uma mãe solteira que batalha para criar a filha – omitindo seus sofrimentos para protegê-la – e seguir conquistando espaço em seu emprego, mesmo sem um diploma. A temática dos obstáculos enfrentados pelas mulheres contemporâneas, por sinal, é bastante cara ao trabalho de Fitoussi, que povoa sua trama quase que exclusivamente com figuras femininas, enquanto os poucos personagens masculinos surgem, basicamente, como representações de tais obstáculos: o pai ausente, o pretendente adúltero que Cyrielle conhece através de um site de relacionamentos, o chefe abusivo e até mesmo o jovem Emile (Joshua Mazé) que também estagia na seguradora, e por quem Anouk se interessa.
Esse componente do romance adolescente e da desilusão amorosa acaba perdendo espaço em meio aos questionamentos sobre o aspecto nocivo e sufocante do ambiente corporativo, que mesmo não apresentando toda a contundência pretendida, com Fitoussi se valendo de alguns simbolismos pueris – como a caveira de post-its na parede ou o ato de “rebeldia” envolvendo os chocolates – e de algumas composições caricaturais de personagens – as supervisoras de Anouk, em particular – ao menos levam a uma conclusão calcada na realidade, que não apela para reviravoltas improváveis e atos de heroísmo. Uma realidade transformadora da qual Anouk procura se libertar, ao menos momentaneamente, em seu grito solitário abafado pela música de uma festa, e retornar à simplicidade da fantasia infantil, ainda que tenha consciência de que já não é mais a mesma garota de antes de sua semana de estágio.
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