Crítica
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Sinopse
Reine contempla o caos urbano como uma unidade mística aparentemente viva. A jovem solitária enxerga essa manifestação como uma espécie de guia.
Crítica
Genius Loci (2020) possui uma estrutura muito particular. Cada imagem aparenta negar a anterior, ou oferecer um ponto de vista totalmente diferente sobre ela. Por exemplo, um bebê é visto dentro de seu berço, em plano de conjunto, de modo frontal. No plano seguinte da mesma cena, os traços dele estão simplificados, o berço desaparece, e a casa se sobrepõe a um fundo infinito. O bebê vira o rosto para o lado, e num corte da montagem, ele se encontra dentro de um cenário cubista, multicolorido, que depois se dissolve, se transmuta, se reconfigura. O diretor Adrien Mérigeau trabalha os espaços como se tivesse uma massinha de modelar nas mãos. Os planos navegam por linguagens radicalmente diferentes, porém unidas pela montagem. Em consequência, surge uma estimulante imprevisibilidade: o espectador terá dificuldade em antecipar a próxima imagem, ou a próxima configuração do espaço-tempo. Uma casa convencional se transforma em palco, em linhas de desenho sobre papel, em meros sinais luminosos sobre um fundo preto. Por mais que o roteiro acompanhe a jornada de Reine (Nadia Moussa) pela cidade, o verdadeiro protagonista é a linguagem cinematográfica: pode-se sustentar a tese de que este curta-metragem discute, em primeiro lugar, o próprio cinema.
O projeto nos lembra das infinitas possibilidades que a animação é capaz de oferecer. Alguns dos filmes menos interessantes dentro da linguagem animada são aqueles que buscam ao máximo reproduzir a realidade fotográfica. A Dreamworks desenvolveu novos softwares para trabalhar o movimento real de pêlos e cabelos em seus personagens, enquanto a Disney se esmerou em criar leões o mais verossímeis possível na versão de O Rei Leão (2019). Ora, de que adianta utilizar a linguagem de maior liberdade para correr atrás do real e tentar imitá-lo? Este filme francês representa a antítese deste pensamento: nenhum enquadramento, imagem ou conflito poderia ser representado enquanto tal pelo cinema em live-action. A recusa do naturalismo transparece um firme posicionamento artístico: se eu posso fazer com que uma casa se liquefaça diante dos nossos olhos para se converter numa cidade inteira e depois adquirir a forma do olho de um bebê, por que me limitar à reconstituição banal de um imóvel visto pelo mesmo ângulo? Se uma pequena embalagem de isopor pode conter um grupo de marginais em seu interior, por que me privaria de fazê-lo? “Eu aprendi que a música pode ser apenas sons, sem razão”, afirma uma pianista. Ela representa o ponto de vista de toda a direção, despida da obrigação de “passar uma mensagem”, de efetuar uma jornada linear, de emocionar a qualquer preço.
Isso não significa que a trama seja desprovida de sentido, pelo contrário. A convivência entre duas mulheres negras dentro de uma casa, cuidando de um bebê, evoca uma realidade social bastante específica. Reine se sente compelida a sair de casa, explorar a cidade fascinante e assustadora. Ela constitui uma heroína clássica no sentido de aceitar o convite a uma aventura, cujas motivações ultrapassam o desejo pessoal. A jovem desconhece os motivos que a levam para as avenidas barulhentas, os viadutos cinzentos, os becos cheios de sujeira. No entanto, ela é movida pelo princípio do movimento (assim como o cinema), e não pode parar. Seria muito interessante traçar um paralelo entre o curta-metragem europeu e o longa-metragem brasileiro O Menino e o Mundo (2013), outra jornada de animação rumo ao enfrentamento de um mundo caótico, multicolorido, geométrico e repleto de desigualdades. Reine seria uma parente distante do garotinho de Alê Abreu, com a diferença que, passados os anos, a francesa tem algo a perder quando se entrega à cidade, enquanto o menino partia com a sensação de ter a vida inteira pela frente. O fato de a protagonista se converter num animal raivoso ao longo desta experiência sintetiza muitíssimo bem a angústia crescente das metrópoles.
O filme possui outro elemento curioso: por um lado, ele fornece pura imersão, uma montanha russa de formas, cores e sons. O espectador é convidado a viajar junto de Reine, e a se perder com ela – a jornada constitui uma finalidade em si própria. Por outro lado, o cinema beirando a abstração, recusando a estética fotográfica e permitindo sentidos tão amplos forneceria um prato cheio para o distanciamento e a dificuldade de identificação. Como torcer por uma personagem cujos traços se formam, desformam, sobrepõem, desaparecem e reaparecem? Uma heroína que tem todos os rostos, e não tem rosto nenhum? Ora, Adrien Mérigeau comprova que a imersão não precisa ser o oposto de um distanciamento crítico, contanto que se solicite a presença de um espectador ativo, e que um discurso coeso atravesse as imagens. A exemplo da belíssima série The Midnight Gospel (2020), Genius Loci explora o mosaico de estímulos para colocar o espectador em tal posição que tenha apenas o discurso linear ao qual se agarrar. Nas salas de cinema, somos condicionados a prestar atenção ao único foco luminoso da tela, enquanto o espaço ao redor permanece escuro. Em raciocínio semelhante, o debate sobre a multidão solitária se torna a única forma de linearidade presente neste filme, enquanto as imagens se debatem espetacularmente entre si. O resultado se mostra ao mesmo tempo ousado, carinhoso (vide a cena final) e politicamente relevante. A melhor maneira de provocar artisticamente o espectador se encontra na forma, ao invés do conteúdo.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
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Bruno Carmelo | 10 |
Francisco Carbone | 8 |
Ailton Monteiro | 7 |
Chico Fireman | 6 |
MÉDIA | 7.8 |
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