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Crítica


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Sinopse

A naturalista e ambientalista Zoe Lucas vive é a única moradora fixa da Ilha Sable, ocupando este pequeno espaço coberto de areia há 40 anos. Ela dedica dias e noites a proteger os animais, catalogar as espécies de plantas e retirar o lixo marinho que chega às areias da ilha. A habitante revela suas reflexões, amadurecidas ao longo de décadas de pesquisa, a respeito da vida e da morte.

Crítica

À primeira vista, este documentário aparenta ter como tema central a Ilha Sable, uma formação coberta de areia, de 40km de extensão, tomada por cavalos e lontras vivendo livremente. A câmera passeia pelo local sem florestas nem ruas, sem casas nem divisões internas. Há areia para todos os lados, até o inevitável encontro das águas. A diretora Jacquelyn Mills registra o território canadense pouco conhecido pelo público médio com uma atmosfera de sonho: a textura do 16mm, os fortes sons de vento, de ruídos de animais e a ausência de conflitos produzem uma aparência mágica, descolada de um senso de realidade. Algas são iluminadas apenas pelo luar; carcaças de cavalos se decompõem ao ar livre, pilhas de fios e garrafas de plástico ancoram na praia. A região está repleta de atividades e acontecimentos, mas poucos conflitos, ou seja, oposições de vontades. Nada indica que Sable será diferente daqui a algumas décadas, pois aparenta ter guardado uma configuração semelhante pelo menos desde os anos 1970. Embora relativamente próximo do Canadá continental, o terreno não é disputado nem procurado por ninguém. Ele carrega a aparência de um país esquecido, cortado do resto do mundo — uma nação intacta, selvagem, o que justifica sua beleza e sua tristeza.

No entanto, Geographies of Solitude (2022) impressiona de fato quando percebemos que a ilha constitui um ponto de partida, um meio para outro fim. A iniciativa da cineasta jamais se confundiria com a reportagem televisiva a respeito de um destino exótico, pelo contrário: a linguagem possui papel fundamental neste retrato da solidão (seja da natureza ou dos humanos). A filmagem é guiada pelo olhar de Zoe Lucas, única moradora voluntária desta formação insular há quatro décadas. Como boa cientista, protege a vida marinha, os cavalos e insetos do local, anotando a evolução destas comunidades em contraste com o desenvolvimento do terreno — o aumento ou desaparecimento de dunas, lagos, vegetação. Para além das obrigações profissionais, a mulher demonstra uma obsessão sem precedentes em catalogar cada lixo ou pedaço de fio encontrado, primeiro num caderno, depois numa planilha informatizada. Balões são recortados, fotografados, separados por cor e origem. Quando o pedaço de lixo tem endereço de procedência, é reenviado ao proprietário. A protagonista possui conhecimento ímpar acerca da llha Sable, dedicando sua existência a esta causa importantíssima para si, e desconhecida pelo resto do mundo. Questionada se pensa em voltar ao continente, ela responde ser tarde demais. De certo modo, tornou-se parte da paisagem, um misto curioso entre a dona deste local ermo e sua mais fervorosa (e única) guardiã. Zoe Lucas se converteu no guerreiro armado de um castelo vazio.

O filme foge à armadilha do personalismo: nunca descobriremos a vida pessoal da moradora, seus sentimentos de solidão ou satisfação. A câmera sequer se aproxima muito do rosto, sempre encoberto pelos cabelos e pelas abas do chapéu. A imagem prefere captar as botas pisando na areia, as mãos segurando algum inseto, a voz guiando uma apresentação de espécies endêmicas. Mills demonstra tanto respeito pela atividade profissional de Zoe Lucas quanto pudor em invadir sua privacidade. A aliança entre elas, numa região familiar para uma, e inédita para a outra, representa o foco de interesse da abordagem: embora muito próximas num instante, compartilhando pensamentos e presenciando mortes e partos, elas delimitam o escopo de suas atuações no momento seguinte. Quando a cineasta solicita companhia da outra para gravar um registro sonoro, escuta como resposta: “Você não precisa de mim para captar som”. A poesia das imagens fluidas se confronta ao pragmatismo inabalável de Zoe Lucas, assim como os métodos da ciência se fundem àqueles, mais porosos, das artes. O melhor encontro destes dois mundos ocorre em fragmentos experimentais. Nestes casos, Mills aproveita a areia e as fezes dos cavalos para afetar o processo de revelação da película — o cinema se transforma num meio orgânico e natural. O filme vai além de registrar a ilha, misturando-se e incorporando-se a ela.

O percurso revela atenção primorosa aos sons, dissociados da imagem referente. As falas de ambas as mulheres são descoladas do instante em que se pronunciam, enquanto o vento, a areia e os animais produzem uma sinfonia que o documentário converte, literalmente, em música. Seria fácil sobrepor estes experimentos científicos ao objeto representado, chamando atenção excessiva à direção. Ora, a incorporação de películas modificadas pela natureza possui papel discreto, e nem a pluralidade de sons, nem o silêncio absoluto é explorado a ponto do desgaste. O projeto carrega a aparência rara de um filme gigantesco e minúsculo, seja por refletir a respeito de questões essenciais como a permanência das coisas, nossa relação com os espaços e o senso de pertencimento; seja por se limitar à convivência entre duas mulheres numa ilha deserta, retratadas quase exclusivamente por frases em off, dispersas na narrativa lacônica. Quando ameaça se tornar naturalista demais, a montagem oferece a música dos insetos; quando envereda por um caminho demasiado etéreo, volta às planilhas e cálculos de Zoe Lucas. Traça-se um equilíbrio fino entre a observação distante e a apropriação para fins de ressignificação artística, ou entre o documento de uma realidade e a reflexão a partir da mesma.

Por fim, cabe indagar o título: “geografias da solidão” pressupõe a existência de um relevo, uma complexidade interna ao fato de se estar só. Encerramos a projeção sem conhecer Zoe Lucas em profundidade, mas recebemos informações suficientes para uma digressão a respeito de um local tão rico em espécies quanto pobre em recursos à preservação. Onde alguns veem meros bancos de areia intermináveis, a pesquisadora enxerga sistemas biológicos complexos, e a cineasta percebe possibilidades infinitas de criação, composição e descoberta estética. O monólogo final constitui um momento de beleza ímpar, graças à capacidade de reunir, num único gesto, a ciência, a arte e a filosofia enquanto veículos de conhecimento. A solidão seria uma liberdade ou uma prisão? Uma conquista ou punição? A imagem volta com frequência à estrutura decadente de uma casa de madeira, consumida em sua maioria pela areia e pelo tempo. O telhado segue aparente, mas o resto se aprofunda no solo e se mistura aos alimentos orgânicos (restos de animais, insetos) e inorgânicos (o plástico, o lixo jogado na costa de Canadá e Estados Unidos). O cinema se une ao procedimento de Zoe Lucas, de maneira respeitosa e adjacente, na percepção dos ciclos de vida e morte, e na necessidade que as coisas mudem para permanecerem, se possível, iguais a si próprias. Existe um posicionamento político, quase uma afronta à modernidade e ao Iluminismo, ao se retirar o fator humano da equação, ou ao menos colocá-lo em segundo plano, servindo de mão para ajudar os insetos, e de câmera para filmar os cavalos. Aqui, a natureza se impõe.

Filme visto no 72º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2022.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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