Crítica
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Sinopse
O rastro de Diadorim, personagem do sertão mineiro de Guimarães Rosa, é percorrido pelo povo geraizeiro.
Crítica
“Tudo o que você plantar dará fruto. Só uma coisa que não. Onde já se viu plantar pedra? Pois aqui isso aconteceu. Tá vendo ali? São pedras que nasceram de outras que ali foram enterradas”. No coração de Minas Gerais, as histórias mais improváveis – e deliciosas de se ouvir – se tornam possíveis pelos relatos e desdobramentos levados através de gerações de famílias não apenas nascidas por ali, mas que também por lá passaram, se estabeleceram e, apesar de tudo, depois se foram, levando consigo histórias que tomaram o mundo. O maior de todos esses contadores de ‘causos’ talvez tenha sido Guimarães Rosa, e se essa for uma verdade, é certo também que a obra definidora da sua escrita foi Grande Sertão: Veredas. Publicado pela primeira vez em 1956, é tratado como um “romance experimental modernista” e até hoje visto como um dos marcos da literatura brasileira. No entanto, o que poucos analisam é que por trás da paixão entre Riobaldo e Diadorim há não apenas um infinito mundo de referências e apropriações, mas também um envolvimento menos explorado e difundido. Estes dois olhares guiam os realizadores de Gerais da Pedra, documentário feliz não apenas em se aprofundar em um material rico de origens e em influências, mas também lírico o bastante para fazer sentido ainda hoje, décadas após o seu lançamento.
Diego Zanotti, Gabriel de Oliveira e Paulo Junior são os responsáveis por esse trabalho da mesma produtora por trás de longas como Entre Nós Talvez Estejam Multidões (2020) e Castelo de Terra (2020). Além de documentaristas, o trio é também multidisciplinar. Diego é psicólogo, Gabriel é professor de Geografia e Paulo atua também como jornalista, entre outras coisas. Munidos dessa miríade de reflexões e ideias, saíram a percorrer o interior mineiro na tentativa de não apenas buscar a comprovação de uma hipótese – afinal, Diadorim existiu ou não? – mas, acima de tudo, ouvir as pessoas dessas regiões e permitir que essas, enfim, tenham suas vozes difundidas por elas mesmas, e não pela versão de outros. Uma coisa logo fica evidente em suas andanças: há muito o que ser dito. Rosa foi médico e diplomata, e por anos percorreu estes mesmos caminhos. Ouviu o que agora esses ouvem, fez as mesmas perguntas que hoje são refeitas, se deparou com iguais depoimentos. É um mundo parado no tempo, mas longe de se mostrar estático. Essa vivacidade é determinante das cores não só de um livro que entrou para a formação de um povo, mas para as feições de uma identidade que até hoje se mostra pré-disposta à transformação.
A figura mais importante de Grande Sertão: Veredas é, sem dúvida alguma, Diadorim. Ainda que o protagonista seja o jagunço Riobaldo, e um dos seus colegas, conhecido pelos demais como Reinaldo, se mostra um ser enigmático, do qual o narrador se percebe atraído a ponto de tomar seus pensamentos. É este ser quase inventado, que não se vê igual para onde quer que se procure, que desperta interesse e curiosidade por todos, sejam os demais personagens, ou mesmo os leitores que acompanham o desenrolar dos acontecimentos. A revelação de que Reinaldo é, enfim, Diadorim, e que aquele que todos pensavam ser um homem não passava de uma mulher disfarçada, oferece uma capa de normalidade ao envolvimento dos dois, mas também serve como nuvem de fumaça ao que, enfim, de fato acontece: Riobaldo se apaixona, antes de qualquer coisa, por Reinaldo. É pelo homem ao seu lado que se vê ligado. Apenas depois dessa relação se tornar concreta é que descobre se tratar dela, e não, dele. O caráter homossexual, como se vê, é nítido. Mas por quanto tempo se desviou dessa verdade?
Com isso em mente, os diretores partem em uma intrigante excursão, em um misto de trabalho de campo com mergulho antropológico. Teria existido uma Diadorim? E, se ela por aquelas bandas percorreu, seria única em sua aventura, ou outras como ela também deste mesmo exemplo fizeram uso? Seria praxe a existência dessas “mulheres-macho”, garotas que, em um universo absolutamente masculino, teriam recorrido a uma fantasia inventada para si para poderem ser, enfim, quem de fato eram? E o que isso tem a dizer ao público de hoje, quase um século depois? As analogias vão se consolidando com o inteligente emprego das próprias palavras do escritor, que pontuam na tela o desenrolar dessa pesquisa. Frases inteiras permeiam a trama como momentos de respiro e reflexão, propiciando tanto uma compreensão pontual como, em muitos casos, um olhar mais amplo do horizonte que aos poucos vai se desenhando. Tanto um quanto outro foram inventados, mas não ao acaso, e muito menos de forma aleatória. As fontes de inspiração, rapidamente se percebe, estão por todos os lados. O esforço maior, como fica claro, foi o de ligar os pontos.
Assim como a pedra pode ter brotado em um terreno fértil, também se permite gostar daquele que, no fundo, sabe não amar. Em terra onde mulher não leva desaforo para casa, desde pequena os exemplos sobre como manter a cabeça erguida frente aos mais violentos desaforos e ataques muitas vezes surgem de dentro de casa. Gerais da Pedra mostra o quão forte pode ser essa herança transmitida de mãe para filha, de avó para mãe, remontando a gerações inteiras de antepassados. Guimarães Rosa fez do fato ficção, e desta poesia que até hoje segue firme como retrato de um Brasil que muitos insistem em ver como pitoresco, de fato é até menos imaginado do que os traços fortes que emolduram a realidade. Em um país que não conhece a si mesmo, e cujos empenhos em formatar essa construção ainda se confirmam frágeis, mesmo após tanto tempo ter se passado, uma investigação como a que Diego, Gabriel e Paulo assumem como compromisso não pode ser vista como leviana ou caprichosa, por mais que por vezes se veja obrigada a contornar becos fechados e caminhos sem saída. Afinal, o que reúnem são possibilidades, e não definições. Os caminhos seguem múltiplos. Algo tão válido ontem como hoje ou amanhã.
Filme visto em Recife em dezembro de 2022, durante o 26º Cine PE: Festival do Audiovisual
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