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Crítica


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Sinopse

O adolescente Jack inicia sua transição de gênero sob a câmera da diretora, cujo filho também é um rapaz transexual. Ao longo dos anos, Jack aceita seu corpo e sua identidade enquanto luta por estabilidade financeira e reconhecimento legal dentro de um Brasil cada vez mais conservador.

Crítica

Durante a Parada da Diversidade LGBTQIA+, um grupo de jovens sussurra e aponta para a câmera, situada a alguns metros de distância: “Tem uma mulher filmando a gente”. Um dos garotos responde: “É a minha mãe!”, tranquilizando a todos. A cineasta Coraci Ruiz adota uma postura peculiar neste documentário: por um lado, ela está ausente nas imagens; nunca conduz entrevistas formais com seus personagens, nem propõe reflexões via narração em off. Por outro lado, sua presença é assumida, causando estranheza ou constrangimento por parte dos protagonistas, que hesitam em falar sobre desejo e relações sexuais diante dela. Assim, evita-se tanto a impressão de objetividade fatual, digna das reportagens jornalísticas, quanto a postura em primeira pessoa, controlando o discurso a mão de ferro. “Jack é amigo do nosso filho mais velho”, explica um letreiro inicial, destacando o “nosso” e lembrando a figura de uma autoria tão presente quanto ausente. Quantas mães abraçariam a identidade de gênero de seus filhos trans e não-binários a ponto de acompanharem seu processo de transição durante anos, abrindo a câmera para se expressarem como quiserem, sem julgamentos morais? A abordagem combina orgulho de cineasta, carinho materno e militância de uma artista politizada.

Devido à proximidade com Jack e os colegas, Ruiz e Júlio Matos permitem um clima de descontração fundamental à aparência naturalista do projeto. O documentário foge ao teor alarmante e à noção de urgência. Pelo contrário, privilegia a atmosfera contemplativa, graças à filmagem efetuada ao longo dos anos. Tal abordagem permite que os adolescentes se desenvolvam diante das câmeras, fruto de uma generosa abertura ao acaso e aos rumos determinados pelos próprios personagens. Assim, nenhum garoto ou garota desempenha ações específicas para a necessidade da câmera — é o universo dos adultos cisgênero que se adapta, humildemente, às ações que a turma venha a oferecer. Qualquer menção à genitalidade ou aos rótulos identitários virá da conversa amigável dos meninos, que se denominam “boycetas”, em oposição a homens trans, e ostentam com prazer a nova barba, enquanto discutem a possível operação para a retirada dos seios. Estes tópicos se desenvolvem num ambiente protegido, afetuoso, desprovido de sensacionalismo. Jack aplica a testosterona na perna, diante das câmeras, como quem aplicaria sua injeção de insulina, ou tomaria qualquer remédio de uso contínuo. Por que viria a ser diferente, certo? A leveza na representação da transgeneridade constitui um dos principais méritos do projeto.

Em paralelo, o longa-metragem costura a evolução de Jack à chegada da onda conservadora no Brasil, que culminou com a eleição de Jair Bolsonaro, amparado em falas transfóbicas dos membros do seu governo. Este aspecto confere ao conjunto certo peso, ou pelo menos um caráter de preocupação: apesar de se sentirem bem em seus corpos, e se entenderem cada vez melhor com as identidades, os protagonistas enfrentam uma nação policialesca, disposta a eliminar e criminalizar as diferenças. Dois registros se alternam para representar tais reflexões: as frases pichadas em muros da cidade, com lemas de luta e autonomia do indivíduo, e os pronunciamentos de pastores, ministros e demais porta-vozes da intolerância mal disfarçada de “liberdade de expressão”. A postura progressista do filme fica evidente, mas os cineastas vão além, efetuando uma colagem agressiva destas falas nocivas. Assim, fotos de templos e igrejas neopentecostais se sucedem na tela numa sequência caótica, de imagens anguladas junto a sons estranhos e potencialmente monstruosos. A montagem “demoniza” estas vozes, atribuindo-lhes um tratamento de vilania que o projeto dispensaria — afinal, a sequência sublinha um discurso que já vinha sendo afirmado até então, com igual clareza e maior complexidade.

Estas interferências de finalização culminam na presença de uma animação responsável por contornar digitalmente alguns personagens e objetos em cena. Talvez a intenção tenha sido de incorporar uma forma de poesia pop às imagens, entretanto, o recurso chama tamanha atenção a si mesmo que distrai o foco do humanismo. Esta seria a única ferramenta de vaidade dos cineastas, quando pretendem atirar o olhar do espectador para si. Ao menos, trata-se de um recurso pontual, que jamais monopoliza a narrativa. Germino Pétalas no Asfalto (2021) resulta numa bela crônica de nossos tempos contraditórios, que permitem tanto a Jack conquistar os documentos com seu nome social quanto ao presidente espalhar desinformação a respeito de uma ilusória “ideologia de gênero”. Estamos evoluindo e involuindo simultaneamente, sugere o discurso. Enquanto refletimos a respeito dos horrores instalados no Palácio do Planalto, testemunhamos a belíssima cena de jovens dançando num baile inspirado do ballroom norte-americano e nos bailes kiki; além de reuniões da militância e rodas de debate a respeito da religiosidade de indivíduos trans. Neste momento, fica claríssimo o valor tão político quanto artístico desses corpos, cuja presença incomoda a heteronormatividade patriarcal. Um encontro entre ativistas inicia-se com a performance de uma artista trans, num gesto de orgulho e afrontamento que resume a postura do longa-metragem. Já a garota travesti possui falas fortíssimas, elevando o teor do filme graças à sua eloquência e potência diante das câmeras.

É uma pena que, apesar de diversos anos seguindo os protagonistas, tenhamos poucas imagens destes jovens em suas vidas amorosas, familiares, profissionais. A naturalização de corpos e identidades trans também decorre da percepção de amores e dilemas de trabalho semelhantes àqueles de qualquer espectador cisgênero — não que o cinema precise trazer ensinamentos ao público cis e se adequar à sua visão de mundo, é claro. Embora introduza a cena de Jack na função de atendente de telemarketing, e cite a libido pronunciada dos adolescentes em tratamento hormonal, o roteiro se mantém alheio a um comportamento cotidiano. Imagina-se que o respeito de Ruiz e Matos pela privacidade dos garotos se traduza em pudor, e num consequente distanciamento, evitando cenas  que completariam positivamente o filme tão curto. De qualquer modo, o documentário proporciona um olhar terno e assertivo a estes personagens, focando-se de maneira direta em sua identidade de gênero e suas lutas. Os autores nunca permitem que a experiência do filme desloque nossa digressão às temáticas adjacentes — permanecemos numa explanação direta do tema central. Assim, oferecem um belo exemplo de cinema político, capaz de imprimir seu ponto de vista sem instrumentalizar as falas dos personagens para corroborar com a tese inicial dos criadores. Jack e os amigos possuem autonomia para se portarem da maneira que acharem melhor. Tal abertura à alteridade termina por consolidar as qualidades do filme.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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