Crítica
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Sinopse
Num Japão devastado após a Segunda Guerra Mundial, tudo fica ainda mais crítico quando uma criatura gigantesca e brutal surge das águas dispostas a destruir tudo o que vê pela frente. Um soldado atormentado pela culpa assumirá a missão de combater o temível Godzilla.
Crítica
Há alguns anos Hollywood voltou a se interessar por criaturas gigantes ameaçando a supremacia humana na Terra. Nessa toada, King Kong e Godzilla ganharam evidência – eles chegaram até a trocar umas porradas em Godzilla vs. Kong (2021). No entanto, o daikaijū que personificou o trauma nuclear japonês depois das bombas lançadas pelos Estados Unidos sobre as cidades de Hiroshima e Nagasaki é oriental de nascimento (apareceu pela primeira vez em Gojira, 1954). Com Godzilla Minus One o Japão prova que está muito à frente dos EUA no quesito “fazer filmes de Godzilla”, especialmente porque não trata esse icônico monstrão apenas como um predador enorme, atribuindo a ele uma natureza próxima ao sublime, quase como um Deus da destruição. No entanto, o protagonista desse melodrama de guerra é Shikishima (Ryunosuke Kamiki), soldado kamikaze que deixa de lado a sua missão suicida e dá um jeito de aterrissar na ilha de manutenção durante a Segunda Guerra Mundial. Essa fuga do dever recai sobre ele como um peso moral grande demais para ser carregado, especialmente dentro de uma cultura em que a honradez é um atributo fundamental da cidadania. Não bastasse isso, a sua “covardia” ganha ainda mais camadas quando ele não consegue disparar contra Godzilla, assim deixando outros militares à mercê da criatura. Na sociedade japonesa, Shikishima é convidado a se sentir pária.
Ao retornar à capital Tóquio, o protagonista se depara com uma vizinhança destruída, seus pais mortos, a vizinha ressentida por sua deserção e uma dupla de desamparadas com a qual constrói uma família improvável. Noriko (Minami Hamabe) assumiu a responsabilidade de criar uma bebê que perdeu pai e mãe nos bombardeios da Segunda Guerra e encontra em Shikishima uma companhia nessa árdua etapa de reerguimento. Godzilla Minus One trabalha habilmente os elementos melodramáticos de sua trama, deixando contratempos, impossibilidades e dilemas à flor da pele, enfatizando nesse ínterim a tragédia da orfandade que conecta diversos personagens e, além disso, retratando um país que precisa juntar os cacos que restaram (física e moralmente falando). Nesse cenário repleto de escombros, miséria e emocionais estraçalhados, Godzilla aparece como uma manifestação bestial da natureza que contempla a perversidade humana. Depois de atacar uma ilha, talvez para conseguir alimento, o daikaijū é despertado novamente por um teste nuclear realizado no Atol de Bikini (pelos Estados Unidos), tornando-se portador também da temida energia radioativa. Então, além de ser besta-fera imponente capaz de dizimar cidades inteiras, seja com a sua fúria gigante ou mesmo com o raio de calor expelido do corpo, ele ainda deixa um rastro da obra humana pensada para causar destruição em massa.
Godzilla Minus One remonta a um contexto social muito triste, o do pós-guerra. Nele, o Japão é largado à própria sorte diante da ameaça de Godzilla porque os Estados Unidos preferem lavar as mãos a dar qualquer passo em falso na Guerra Fria mantida com a União Soviética. Além disso, há um personagem coadjuvante que sempre faz questão de vomitar a sua indignação contra o comportamento do governo japonês que propaga a ética como motivo suficiente para soldados cometerem suicídio ritualístico em nome da pátria, mas é incapaz de lidar com as próprias responsabilidades. E dentro dessa moldura que contém oportunas alusões e alegorias políticas, o cineasta Takashi Yamazaki dá uma aula aos colegas hollywoodianos no quesito “mostrar como Godzilla pode ser imponente e assustador”. Sempre que o monstro aparece em cena há a promessa de momentos verdadeiramente tensos, nos quais a fúria da natureza desconhecida se consolida como um obstáculo para o Japão pós-guerra deixar cicatrizarem as suas enormes feridas. As batalhas humanas contra Godzilla são muito bem filmadas, contém a energia e a perícia técnica apropriadas para encarar a ameaça descomunal como componente comovente desse painel melodramático. Mesmo que a criatura seja toda construída em CGI (computação gráfica), possui texturas aparentemente orgânicas. Méritos dos ótimos efeitos digitais utilizados.
Outro item narrativo fundamental para o êxito de Godzilla Minus One é o som. Do rugido de Godzilla ao ruído das embarcações e aeronaves de guerra, passando pela trilha sonora, tudo é bem pensado e orquestrado para conferir ao filme o clima de constante tensão. Takashi Yamazaki não perde de vista a iminência dos ataques do daikaijū, mas enfatiza (com veemência) a tragédia pessoal de Shikishima, alguém que não consegue continuar a vida de onde parou, pois a guerra tirou dele coisas demais. No horizonte desse soldado torturado pela culpa (de ter sobrevivido, de ter rompido com a ética dos kamikazes, etc.) a sofreguidão que não o autoriza a formar uma nova família. Ainda dentro do aspecto melodramático (que aqui combina bem com a ficção científica), cabem os perdões restauradores, as irresponsabilidades bem-vindas, as reviravoltas emocionais e os reencontros improváveis. Quando a história pede ação, o realizador imprime voltagem até mesmo em situações que atendem a lugares-comuns do filme de guerra. Tão logo Godzilla esteja à espreita como um predador, ele elabora muito bem o drama humano da população que perdeu quase tudo, inclusive as suas referências morais. O resultado dessa combinação bem-sucedida é um longa com a qualidade dramática e de ação ausente nas vezes em que Godzilla virou estrela de Hollywood. Nada como voltar à essência para fazer a diferença.
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