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Sinopse

O imponente Kong parte numa jornada para encontrar seu verdadeiro lar. Acompanhando o gigante está Jia, órfã que possui uma ligação muito forte com ele. Mas, ninguém imaginava que o caminho teria um Godzilla enfurecido.

Crítica

A suspensão da descrença é a predisposição do espectador a aceitar como verdadeiras as premissas das obras de ficção, por mais fantasiosas que elas sejam. Trocando em miúdos, é a supressão dos julgamentos baseados na estrita realidade. Quando nos deparamos com dois monstros gigantes em Godzilla vs. Kong, antecipadamente somos condicionados a tolerar absurdos relacionados à imaginação da existência de Titãs rivalizando desde os tempos imemoriais por supremacia. Nesse sentido, por exemplo, um veículo servindo insolitamente como desfibrilador para acordar um ser monumental em vias de morrer não é absolutamente estranho, pois se encaixa de maneira adequada nessa lógica interna construída pelo cineasta Adam Wingard. Entretanto, há uma série de outros disparates, próximos das conveniências narrativas e facilidades de roteiro, que não se enquadram automaticamente nesse consentimento. Os idealizadores da superprodução que choca criaturas consideradas clássicas pela aparição anterior em filmes e séries parecem crer piamente que basta ter um núcleo fantástico para o espectador simplesmente fechar os olhos e “comprar” qualquer incongruência.

Diferentemente de Kong: Ilha da Caveira (2017), construído de modo evidente como exemplar semelhante e reverente às fantasias/aos sci-fi B dos anos 1950/1960, ou seja, abraçando irracionalidades e paradoxos como fundamentos narrativos – os exageros não somente eram parte vital, mas escancarados como tais –, Godzilla vs. Kong tenta mostrar um mundo novamente perplexo diante das ameaças de Godzilla, porém calcado numa lógica de ficção científica recheada de empresários malvados e cientistas bonzinhos. Até aí tudo bem, não fossem as consequentes comodidades e inconsistências impostas pelo roteiro, sobretudo quanto ao comportamento dos personagens, mas também a respeito das fragilidades das circunstâncias. Para começo de conversa, há o podcaster que denuncia práticas escusas de uma empresa daquelas nocivas, a única vilã do longa-metragem. Muita gente dá ouvidos às queixas dele, mas aparentemente inexiste qualquer preocupação por parte da marca maligna. Adiante, quando jovens precisam encontrar o sujeito, o fazem com uma facilidade gritante que denota falta de substância e nexo. Invadir instalações altamente protegidas? Aqui é super moleza.

Diante do título Godzilla vs. Kong e do embate central, previsível que o aspecto humano soasse menos interessante. Isso seria minimizado caso a contenda entre os seres descomunais se prestasse a uma metáfora sobre a necessidade de coalisão de rivais diante do inimigo potencialmente destrutivo – alô, movimentos de esquerda do Brasil, no meio de tanta fragilidade há uma lição elementar a ser apreendida aqui. Todavia, mesmo que as cenas de luta entre Godzilla e Kong fossem efetivamente empolgantes (e não são), tendo alguma densidade para gerar esse almejado impacto figurado, ainda sobrariam metros de enrolação e incoerências, tais como o convencimento acelerado da cientista supostamente responsável de que é boa a ideia de transladar Kong mundo afora para coloca-lo numa aventura rumo ao desconhecido. Monotrilhos que fazem o trajeto EUA/Hong Kong em minutos são cabíveis nesse universo fantasioso, mas o despertar imediato de Kong de uma sedação contínua de quase 100% diante da ameaça é um osso duro de roer, pois apenas pertinente.

Há certos lugares-comuns em Godzilla vs. Kong que, se abraçados vigorosamente, poderiam moldar uma estratégia autoconsciente de aludir à tradição absurda. Um deles é a menina nativa, única capaz de se comunicar com Kong. Porém, a utilização desse arquétipo por Adam Wingard está longe de ser um componente alusivo, redundando num clichê cuja efetividade está justamente na superficialidade da engrenagem surrada, desgastada ao ponto de valer pouco. Outro é a sequência de revelações repentinas, como se golpes de sorte de frequência altamente questionável. Quando um prédio é quase destruído pela fúria de Godzilla, sobra intacta entre os escombros a única peça capaz de denunciar ao curioso o plano maligno da empresa que pretensamente zela pela Terra. Demais chavões, como a herdeira com cara de vilã, também são perpetuados impunemente. Os núcleos têm funções específicas dentro de um todo esquemático: o de Millie Bobby Brown, denúncia; o de Rebecca Hall, descoberta; o de Demián Bichir, ameaça. No meio disso, dois monstros (e de bônus um terceiro) tendo a ancestralidade como desculpa para gerar raros instantes de tensão e dramaticidade. Suspensão da descrença é algo. Invalidar o bom senso e a coerência? Aí é um pouco demais.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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