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Sinopse

Nancy é uma mulher viúva de 55 anos, que esteve com um único homem em toda a sua vida. Esta professora de religião sempre ensinou às garotas como se darem valor para serem respeitadas. Agora, ela quer descobrir o que o sexo tem a oferecer, e talvez conquistar o seu primeiro orgasmo. Para isso, contrata os serviços de um jovem garoto de programa, de codinome Leo Grande.

Crítica

Boa Sorte, Leo Grande se inicia como um conto de fadas. Existe um teor de fantasia nas cores e nas luzes, enquanto a trilha sonora apresenta as composições típicas de aventuras mágicas. Os letreiros em estilo pop conferem um tom jovem à produção: podemos ter a impressão de entrar na sessão da nova comédia estrelada por Larissa Manoela. No entanto, este é um filme sobre sexo (entre outras coisas), envolvendo uma senhora de 55 anos e um garoto de programa. Eles dominam a integralidade da narrativa, que se concentra num único cenário: o quarto de hotel reservado para o primeiro orgasmo da protagonista. A mulher viúva nunca desfrutou das relações com o marido, e sempre desprezou o comportamento de suas alunas, que chamava de “putas”. Por isso, a decisão repentina de contratar um rapaz jovem e musculoso lhe traz bastante apreensão. Nancy (Emma Thompson) chega a fazer uma lista de tudo o que pretende concretizar, se possível, nessa ordem: sexo oral nele, sexo oral nela, ela sentada por cima, etc. A comédia explora com grande perspicácia a nossa dificuldade em falar sobre o tema, em admitir prazeres, fetiches, desejos. Mesmo na fase adulta, a prática é acompanhada de vergonhas e tabus impostos por uma sociedade conservadora. Por isso, Nancy representa o conservadorismo misturado com ignorância, ao passo que o garoto Leo Grande (Daryl McCormack) encara qualquer pedido da cliente com naturalidade. Dois mundos entram em choque.

Um dos méritos deste projeto se encontra na percepção de que o sexo constitui um ponto de partida, ao invés de um objetivo final. Trata-se de uma obra sobre amor, afetos, carência, traumas na juventude, relações familiares. Conforme Leo acalma a personagem nervosa, eles conversam, e revelam mais sobre si próprios do que imaginavam. Longe do sentimentalismo, a diretora Sophie Hyde explora os diálogos velozes e ferozes escritos pela humorista Katy Brand. Nenhum tema será desprezado ao longo dos sucessivos encontros entre os dois: orientação sexual, perspectiva de vida, dignidade na prostituição, questões relacionadas a idade, gênero, geração, religiosidade e nacionalidade. A dupla inicia a jornada na condição de profissional e cliente, para depois se tornarem amigos íntimos, mãe e filho simbólicos, e respectivos terapeutas. O discurso parte de uma ideia preconcebida de prazer físico, para então desconstruí-la rumo a uma noção ampla de erotismo, ultrapassando a esfera da genitalidade. Em paralelo, ambos questionam seus corpos e sua autoconfiança: ela se sente velha e pouco atraente; ele compreende que jamais seria requisitado se não passasse tanto tempo na academia. É possível ao espectador se identificar com essas duas figuras, para além de seus ofícios ou histórico de relacionamentos. Eles transmitem um leque amplo de angústias associadas ao corpo e à afetividade, sobretudo nos tempos contemporâneos. Para aproveitarem as relações um com o outro, precisarão em primeiro lugar descobrir o prazer em si mesmos.

O elenco parte de um conceito divertido: enquanto a atriz veterana interpreta uma mulher inexperiente; o ator iniciante interpreta um veterano. Daryl McCormack encarna o escort boy de fala doce, compreensiva, pronto a qualquer reação de sua cliente. Ele chega a perder a paciência com as sucessivas hesitações da professora, mas sempre retoma o aspecto sedutor antes de uma possível explosão. Em especial, McCormack consegue apresentar um jogo cênico à altura da inspirada Emma Thompson, simbolizando a figura apavorada com a ideia do sexo que tanto deseja, sentindo-se impura, promíscua, fútil. Ela gagueja, acelera a fala, alterna rapidamente entre a euforia e a melancolia. Haverá choros, risadas e gemidos ao longo desta jornada, algo que a atriz modula com impressionante facilidade. Além disso, Nancy foge ao estereótipo da carola moralista: suas falas reacionárias provêm de um automatismo que está disposta a rever, ou pelo menos, atenuar. Em paralelo, Leo encontra limitações no personagem infalível, revelando o rapaz real por trás das roupas elegantes e do linguajar refinado. Conforme as máscaras caem, os dois permitem uma preciosa variação no jogo cênico, onde ninguém detém o controle do encontro. A dupla oferece um tango: ora ele avança, ora ela avança; ora o recuo vem de um, e ora, do outro. Ao invés de se contentar com um lema inocente do tipo “ame a si próprio”, o filme prega a descoberta de uma subjetividade multifacetada em qualquer um, repleta de contradições inerentes. Trata-se de uma proposta de abertura à diferença.

No que diz respeito à construção das imagens, Boa Sorte, Leo Grande aparenta pudico demais a princípio: quando algum contato sexual enfim se concretiza, a câmera se vira à paisagem através da janela, literalmente desviando o olhar. Entretanto, conforme Nancy abraça a perspectiva de um prazer amoral nestes encontros, a comédia também passa a revelar os corpos, a nudez e um ato sexual descomplexado — teria sido incoerente defender a naturalidade do sexo, mas proibir sua representação nas imagens. O diretor de fotografia e editor Bryan Mason mantém uma cartilha clássica no quarto de hotel, com muitos close-ups e planos e contraplanos nas conversas, reduzindo a profundidade de campo. Mesmo assim, cria dinamismo suficiente para evitar planos repetidos, e para que os fundos da imagem se tornem progressivamente mais nítidos, como se Nancy estivesse abrindo os olhos ao mundo ao redor. Por trás da conversa explícita, em termos sexuais e morais, o projeto sustenta a estrutura habitual de uma comédia romântica, com duas figuras que se encontram, se veem atraídas uma pela outra, multiplicam os encontros até uma briga inevitável, e a possível reconciliação entre as partes. Sophie Hyde consegue fazer uma comédia sobre sexo “para toda a família”, dentro dos limites da classificação etária, equilibrando o tema adulto com uma perspectiva agradável sobre os tabus sociais. É fácil rir dessas interações porque representam um pouco das inadequações e inseguranças compartilhadas, em maior ou menor medida, por todos os espectadores. No fundo, rimos de nós mesmos.

Filme visto no 72º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2022.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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