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Crítica
Uma das últimas cenas de Gorbachev.Céu acontece num cemitério, local para onde vão todos, independentemente da estatura social ou relevância histórica. Se trata de uma observação complementar, fechamento de certo modo esperado, tendo em vista o tom predominante neste documentário que encontra um dos homens mais poderosos da segunda metade do século 20 lutando contras as restrições impostas pela velhice. Mikhail Gorbachev foi um dos principais líderes da União Soviética, mas também um defensor ferrenho de políticas reformistas que modernizassem o território há muito protagonista da Guerra Fria com os Estados Unidos. Talvez antevendo transformações que borrariam fronteiras entre capitalistas e socialistas, ele implementou a glasnost, política que aumentava liberdades de expressão e da imprensa, e a perestroika, cuja função era descentralizar decisões econômicas. O cineasta Vitaliy Manskiy faz questão de sublinhar as possíveis contradições e confrontar o seu protagonista. Como poderia ele, ao mesmo tempo, defender a União Soviética e ter facilitado independências que a implodiram? O ex-líder corrobora a aparente incoerência.
Vitaly pergunta: “como é possível o senhor dizer que defendeu a União Soviética e aceitar o amor dos povos hoje independentes que o consideram herói?”. Gorbachev responde: “não vamos tirar o direito das pessoas de amar”. Se trata do único momento no qual existe tensão crescente entre o realizador e o entrevistado famoso que chega a proferir palavras de baixo calão. O ex-político não parece disposto a oferecer respostas fáceis, mesmo às perguntas banais, como quando é questionado por um diretor teatral sobre o que gerava rusgas com sua falecida esposa. De qualquer maneira, Gorbachev.Céu preserva latente uma admiração mobilizadora do sujeito que pergunta e registra pelo homem destemido infelizmente dependente dos empregados para comer e até para realizar tarefas simples, tais como levantar-se da poltrona. Nos instantes em que a conversa assume a linha de frente da narrativa, há diversos ângulos sendo combinados para oferecer dinamismo. Já em outras passagens sintomáticas, o articulador aposentado é observado à distância, um tanto avulso nos cômodos grandes de sua casa repleta de lembranças e espaços vazios. O mito de antes é visto numa solidão crepuscular.
Há também uma vontade evidente de, a partir de Gorbachev, entender melhor o quinhão histórico da Rússia, a principal das nações da antiga URSS. O protagonista é frequentemente enquadrado junto a alguma manifestação pública do atual presidente do país, Vladimir Putin. Isso evidentemente cria uma camada de comparação, embora em poucas passagens Vitaly questione diretamente seu objeto de estudo acerca da atual administração. Esse paralelo é, assim, apresentado subliminarmente. Quando Gorbachev fala de sua vontade de garantir os ideais de liberdade de uma nação que viveu muitos anos sob o jugo de ditadores, Putin pode ser visto se pronunciando na televisão, não tão discretamente ao fundo. O ex-agente da KGB (serviço secreto russo) que recentemente garantiu a possibilidade de permanecer (se eleito, claro) mais 12 anos no poder, numa manobra constitucional considerada imoral por opositores, seria uma espécie de antítese do liberalista Gorbachev. A constatação é o presente/futuro repetindo passados, com o representante da corrente distinta perecendo. A derrocada física do ex- Secretário-Geral do Partido Comunista da União Soviética simboliza isso.
Em Gorbachev.Céu, o cineasta é uma presença extracampo. Mesmo nos momentos em que não provoca fricção, sua voz (tom, modulação e volume) é importante à compreensão da natureza do encontro. Como um filho devotado que se impõe a obrigação de colocar o pai contra a parede, ele eventualmente deixa a afronta suplantar curiosidade e admiração. Aparentemente, Vitaliy Manskiy custa a aceitar os paradoxos de Mikhail Gorbachev, apresentados com uma naturalidade desconcertante. É uma quebra de expectativa enorme que um dos principais atores de um dos períodos de maior polarização social tenha apreço por contradições. Vaidoso, considerando-se o único socialista, ele não se furtou de manter relações com os Estados Unidos, entre outras atitudes controversas. Há o retrato melancólico do homem ciente de viver seus anos derradeiros, combalido pela obsolescência do corpo. No entanto, simultaneamente, o reflexo da mente afiada, capaz de ponderar com semelhante agudeza sobre frugalidades e complexidades. O poder retórico de Gorbachev, apesar de limitações, ainda o distingue nesse filme cujas engrenagens didáticas garantem a inteligibilidade até pelos mais leigos.
Filme visto online no 26º É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários, em abril de 2021.
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