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Sinopse

Maria Alice Vergueiro, uma atriz octagenária e com mal de Parkinson, está endividada pela montagem de sua última peça de teatro. Ela vive a aclamação da crítica e a indiferença da indústria enquanto tenta encarar a morte oscilando entre o horror e o risível.

Crítica

“É cu, é cu
É cu de puta velha,

Buceta de menina

Em cu arregaçado
Não se passa vaselina”

Com esse mantra, repetido inúmeras vezes e com uma intensidade progressivamente maior, Maria Alice Vergueiro e seus colegas de elenco se preparam para mais uma apresentação da peça As Três Velhas, de Alejandro Jodorowsky. Os termos chulos não assustam a senhora de mais de 80 anos – muito pelo contrário, soam quase como um desabafo, um grito de revolta trancado no peito e que há muito espera o momento certo para ser ouvido. E quem permite essa aproximação a um momento tão íntimo das coxias são os diretores Fábio Furtado e Pedro Jezler, que fizeram o registro para o documentário Górgona, filme que nasceu com uma promessa e, mutante como a arte em si, se transformou em algo maior do que o previsto. Felizmente.

Fábio é co-fundador da Cia. Pândega de Teatro, e há mais de uma década trabalha com Maria Alice. Nome maior da cena teatral brasileira, a atriz teve poucos momentos de intensa popularidade durante toda a sua carreira. Os mais velhos talvez lembrem dela como Lucrécia, uma das megeras de Sassaricando (1987), novela da Rede Globo. Já os mais novos, provavelmente a conhecem pelo curta Tapa na Pantera (2006), que se tornou um fenômeno após ter viralizado na internet. Porém, seu talento nunca foi reconhecido à contento fora dos palcos, e estes dois momentos citados acima apenas servem para representar a relação distante e, por que não, conturbada que ela teve tanto com a televisão como com o cinema. E se nenhum destes meios chegou a lhe oferecer oportunidades que fizessem jus a sua importância, Górgona ao menos tenta reparar essa falha – ainda que em parte. O documentário não nasceu com ela em mente, mas Vergueiro o tomou para si, e faz dele sua verdadeira razão de ser.

Durante os cinco anos em que a peça esteve em cartaz, em diversas cidades e temporadas, os dois diretores se posicionaram, diariamente, registrando as andanças do elenco durante as preparações de cada apresentação. São provas de figurino, testes de maquiagem, ajustes de luz e som, impostação de textos decorados, marcações de cena. A ideia proposta era revelar os bastidores da montagem. Aos poucos, no entanto, perceberam ter em mãos algo mais valioso. Os dois diretores se deram conta de que suas câmeras pediam, chamavam, buscavam pela atriz. Peças de teatro, enfim, existem aos borbotões, cada uma com suas particularidades e incertezas, mas, ainda assim, donas de métricas próprias e similares entre si. Mas somente eles tinham Maria Alice Vergueiro.

Atualmente com 83 anos, Maria Alice sobre de Mal de Parkinson desde 2001. Nem a doença, muito menos a idade, indicam uma aposentadoria próxima. Parar é morrer. E como ela não tem medo da morte – o que deixa claro em suas declarações – prefere se encontrar com ela na ativa, quase como que por acaso, ao invés de ficar sentada esperando por sua visita. E assim faz em nome de um ímpeto criativo de coloca em evidência não a mulher, não a atriz, mas, acima de tudo, a artista que é e sempre foi e será. Endividada, sem patrocínio, lutando para manter a casa em dia e sua atividade em pé, enfrenta com dignidade cada uma das dificuldades de sua rotina, seja o equilíbrio das contas no final do mês ou a difícil locomoção que sua condição como cadeirante exige. É humilde para aceitar ajuda, e até reclama quando esse apoio não vem. Mas não por isso se sente vítima da situação. Olha no olho, de frente, de cabeça levantada e garra de sobra para seguir lutando.

Górgona vem da mitologia grega. É um monstro feroz, de aspecto feminino e grandes presas, dotada do poder de transformar aqueles a que olham nos olhos em pedra. Medusa, também conhecida como “a impetuosa”, é até hoje a mais famosa delas. É, portanto, um misto de beleza e desgraça, de atração e destruição, de desejo e morte. Maria Alice Vergueiro ri de si e dos outros, atrai e afasta, acaricia e se apronta para dar o bote. É uma mulher que não tem medo do passado, que encara o presente de frente e abraça o que o futuro lhe oferece. Sem interferências ou regras impostas, Fabio Furtado e Pedro Jezler fazem de Górgona um exercício de observação, interesse e entrega. Um filme que fala do mundo, do ser humano, da vida e da proximidade do fim. O discurso é livre, mas serão as interpretações, movidas por um esforço de ir além do óbvio e mergulhar nas diversas camadas de leitura, que irão dotar esse esforço de novos significados. Válido para hoje, mas ainda mais imprescindível amanhã. Ela sabe disso, e a lição está dada, para quem quiser – e souber – ouvir. Merda!

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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