Crítica
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Sinopse
Um dia, Alexandre toma coragem para escrever uma carta à Igreja Católica, revelando um segredo: quando era criança, foi abusado sexualmente pelo padre Preynat. Os psicólogos da Igreja tentam ajudar, mas não conseguem ocultar o fato de que o criminoso jamais foi afastado do cargo. Pelo contrário, continua atuando junto a crianças. Alexandre toma coragem e publica sua carta, o que logo faz aparecerem outras denúncias de abuso, todas contra o mesmo pároco.
Crítica
O ritmo de produção de François Ozon é tão impressionante que, se continuar por mais algum tempo com essa frequência, logo se tornará conhecido como o Woody Allen francês. Porém, além da intensidade, há também a competência em cada abordagem – além de uma impressionante diversidade nos assuntos escolhidos. Aluno e professor invertiam suas posições em Dentro de Casa (2012), a prostituição se manifestava cedo em Jovem e Bela (2013), a transexualidade ganhou espaço em Uma Nova Amiga (2014), as consequências da Segunda Guerra foram discutidas em Frantz (2016) e o suspense psicológico esteve no centro de O Amante Duplo (2018) – apenas para ficarmos nessa década. No entanto, todos tinham algo em comum, principalmente no caráter sexual dos dramas apontados. Algo que volta em Graças a Deus, porém sob outro viés: a pedofilia na Igreja Católica. Um debate tão urgente quanto necessário.
Alexandre Guérin (Melvil Poupaud) está na faixa dos 40 anos, é feliz no casamento e pai de quatro filhos. Tem um bom emprego, mora bem e tudo lhe parece sorrir. Não fosse um único porém: quando garoto, foi abusado sexualmente pelo padre Bernard Preynat (Bernard Verley, de A Número Um, 2017). A situação foi aquela imaginada por tantos: professor de catequese e responsável pelo coro infantil, estava sempre cercado por crianças. Muitas delas eram apenas meninos e meninas a quem dirigia ensinamentos e palavras de fé e religiosidade. Para alguns, no entanto, sua atenção era diferenciada. O apelo que despertavam nele era, por assim dizer, especial. Por isso mesmo, recebiam dele um tratamento à parte. Em excursões, após as celebrações eucarísticas, no final de cada aula – ele sempre dava um jeito de ficar sozinho com cada uma delas. Momento, este, em que o abuso ocorria. Podia ser apenas uma abordagem mais incisiva, uma mão ousada demais, um carinho inapropriado. Nem sempre havia nudez, ou mesmo sexo – ainda que ocorressem, sim. Cada caso, no entanto, lhe era único.
Com Alexandre foi assim: um afeto que ultrapassou os limites. E o homem ainda sofre pelo que lhe aconteceu tantos anos atrás. Por isso a vontade, agora, de falar, de se manifestar, de não mais permanecer em silêncio. A mulher o apoia, assim como os filhos. Há mais um elemento interessante nessa equação: o adulto nunca deixou de lado a crença na religião que nutria desde pequeno. Ele e sua família seguem indo às missas todos os domingos, e o seu problema é com a pessoa, não com a instituição. Por isso quer fazer o que acredita ser certo: faz a denúncia à Igreja, e não publicamente, muito menos na polícia. Pensa que os trâmites corretos serão seguidos. Que o pároco – que segue em atividade – será afastado das suas funções e devidamente penalizado. E que um justo pedido de desculpas lhe será feito. Mas quando nem o último ele consegue, apesar de todos os esforços, se torna evidente que algo mais precisa ser feito.
É quando entram em cenas outras histórias similares. Afinal, ele não foi o único a sofrer nas mãos de Preynat. E entre tantas vozes, duas irão se destacar. François Debord (Denis Ménochet) se tornou ateu, mas quando criança foi levado pelos pais para junto do mesmo padre. Na primeira tentativa de abuso, ele, ao contrário do que geralmente acontece, se manifestou de imediato – e acreditaram nele. Já com Emmanuel Thomassin (Swann Arlaud), também vítima do mesmo pároco, as coisas não foram tão simples: até hoje amarga uma deformação física no pênis por causa do jeito que o homem o masturbava, além de ter desenvolvido uma epilepsia que o afeta em momentos de tensão. Os dois se juntam à Guérin nessa busca por justiça. Contra aquele que tanto mal os fez. Mas, dessa vez, também contra tudo o que ele representa – e as ações daqueles que, ao invés de protegerem o menor, seguem defendendo a si mesmos.
O sobrenome do diretor é Ozon, mas é no homófono Osons – francês para ‘ousar’ – que recai sua maior força. E ele não precisa de muito, além da coragem para encarar de frente os temas escolhidos. “Graças a Deus muitos destes crimes já prescreveram”, diz o arcebispo Barbarin (François Marthouret, de Vênus Negra, 2010) ao ser interrogado sobre o comportamento da Igreja Católica francesa neste caso em específico, sem se dar conta do real significado do que havia expressado. Pois é justamente sobre isso que o filme se debruça, sem didatismo ou discursos empolados. Até porque estes não se fazem necessários. Afinal, quando há fatos concretos, palavra alguma possui força suficiente para a eles se opor. Está tudo no que esses três homens carregam, nas escolhas individuais de cada um e em como o episódio Preynat é representativo de um problema muito maior. A consciência de que muito pouco aqui é ficção, e sim retrato de uma situação real que até hoje se desenrola, é ainda mais perturbadora. Nada mais há para ser dito. Está tudo bem explícito. E as conclusões ficam por conta de cada um.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
---|---|
Robledo Milani | 9 |
Daniel Oliveira | 7 |
Leonardo Ribeiro | 7 |
MÉDIA | 7.7 |
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