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Sinopse

Grand Tour se passa em Rangum, Birmânia, 1918. Edward, um funcionário público do Império Britânico, foge da noiva, Molly, no dia em que ela chega para o casamento. Durante suas viagens, porém, o pânico dá lugar à melancolia. Contemplando um vazio existencial, o covarde Edward questiona-se sobre o que terá acontecido com Molly. Desafiada pelo desaparecimento de Edward e decidida a se casar com ele, Molly segue o rastro do noivo. Premiado no Festival de Cannes 2024.

Crítica

O cinema do português Miguel Gomes tem a nostalgia como elemento fundamental. Mas isso não diz respeito necessariamente aos personagens. Não estamos falando de filmes com gente demonstrando saudade do passado. Esse saudosismo está impresso na maneira como o lusitano constrói fábulas cinematográficas nas quais as pessoas ainda têm a capacidade de se deslumbrar, de se maravilhar frente a fenômenos desconhecidos e culturas muito diferentes das suas. Nos tempos em que vivemos, a globalização e a internet diminuíram essa predisposição poética ao assombro diante de qualquer coisa. Antes mesmo de algum contato físico e real, é possível pesquisar sobre tudo, destrinchar histórias remotamente e, às vezes, até fazer um passeio virtual em três dimensões por construções, cidades e afins. Por exemplo, suponhamos que alguém visite pela primeira vez as pirâmides do Egito sabendo previamente pouco delas, nunca tendo visto uma imagem sequer dessas maravilhas do mundo. Certamente a admiração pelo monumento será diferente de quem possui certa familiaridade prévia, pois caracterizada pelo espanto da descoberta de algo maravilhoso que ainda precisa ser codificado. É justamente esse encantamento da novidade que permeia Grand Tour, filme dividido entre dois protagonistas que representam, respectivamente, a fuga e a busca. A covardia e a tenacidade. Querer e não querer.

A trama começa na Birmânia de 1918 com Edward (Gonçalo Waddington), funcionário do Império Britânico – portanto representante do colonialismo –, partindo numa jornada meio errática pelos países vizinhos para escapar do casamento com Molly (Crista Alfaiate). Durante a primeira das duas horas do longa-metragem, testemunhamos uma perambulação repleta de melancolia com toques existencialistas do homem em plena fuga. Contando com uma preciosa fotografia em preto e branco assinada por Guo Liang, Sayombhu Mukdeeprom e Rui Poças, Miguel Gomes constrói uma fábula tristonha protagonizada por um sujeito que nem sabe ao certo o motivo que o leva negar o matrimônio, isso enquanto é submetido a cenários, pessoas e culturas que, aos seus olhos ocidentais quase virginais, soam como miragens espetaculares e exóticas. O cineasta português desenha um mundo quase mitológico em torno do sujeito, com isso externando formalmente a sua sensação diante dessa realidade repleta de misticismo, encantamento e perigos irreconhecíveis que se entrelaçam de maneira misteriosa à sua angústia pessoal. O filme não elabora o ruído romântico como um problema simples, evitando atribuir a ele motivos banais. Desse modo, não é esclarecido o porquê Edward é tão reticente diante da chegada da noiva que gostaria de casar. O que importa é a melancolia derivada da crise íntima.

Já na segunda metade de Grand Tour, a protagonista é Molly. A testemunhamos em busca do noivo em fuga, não desanimando diante da falta de respostas e do impasse instaurado entre os dois. Se a parte de Edward é marcada por um contato quase depressivo (ainda que maravilhado) com elementos culturais de um Oriente fantástico por sua capacidade de encher os olhos dos forasteiros, a segunda é permeada por uma alegria meio desesperada. Molly tem uma atitude positiva durante a sua caçada fadada ao fracasso. Ela está sempre rindo (ou forçando um riso) e, de certa forma, aproveita muito mais do que o noivo esse contato com os nativos. Cortejada por um ricaço respeitoso que cai de amores imediatamente, ela se mantém fiel ao propósito, não necessariamente a Edward. Aliás, Molly é a personagem mais interessante do filme porque, ao contrário do homem que foge sem saber ao certo o motivo, meio que movido por uma sensação abstrata de que é preciso continuar escapando, ela sabe exatamente o que a leva a continuar em frente. Molly é fiel à missão autoimposta de atravessar cenários que a fascinam em busca do projeto do matrimônio ao qual se doou. No entanto, essa persistência obstinada é tão trágica quanto a covardia de Edward, haja vista a prepotência tipicamente eurocêntrica com a qual desconsidera os avisos dos chineses sobre o poder do rio Yangtze e teima em seguir navegando.

Esse filme possui uma elaboração complexa. É permeado pela intenção de remontar aos tempos em que o humano ainda se encantava diante do outro, dos seus cenários e da sua cultura. Miguel Gomes opta por mostrar essa dupla viagem europeia pelas profundezas do Oriente como uma jornada umbilicalmente interligada e duplamente trágica. De um lado, o homem que foge sem saber ao certo o motivo e vai perdendo pelo caminho a capacidade de se conectar com o meio – em virtude da disposição que assume contornos neuróticos. Do outro, a mulher que, de certa maneira, vai ficando cega às belezas da cultura, da diversidade e mesmo ao amor porque está também envolvida demais por sua obsessão. Miguel Gomes mistura livremente imagens do nosso presente, feitas nos locais por onde a trama passa, com o passado fotografado em estúdio. E essa diversidade de texturas, granulações e até mesmo de cores ajuda a criar uma sensação de fábula – terreno no qual o português gosta de se embrenhar, como vimos nos filmes da saga As Mil e Uma Noites. No entanto, essa nova história de amor quebradiça entre dois estrangeiros representantes do colonialismo tem mais a ver com Tabu (2012), isso dentro da filmografia do realizador lusitano. Mesmo sendo filmes irmãos, há uma diferença essencial entre os dois. Enquanto Tabu é um drama, Grand Tour é uma tragédia. Ambos são românticos e marcados pela impossibilidade, cada um à sua maneira. Porém, dessa vez tudo é bem mais sombrio e fatídico.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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