Crítica
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Crítica
Os amigos Guel Arraes e Jorge Furtado se lançaram num projeto particularmente desafiante ao levar o livro Grande Sertão Veredas de volta às telonas. Uma das principais obras da literatura brasileira, a prosa modernista de João Guimarães Rosa conta histórias ambientadas num sertão meio realista, meio inventado. Nele, disputas entre jagunços, pessoas comuns e policiais se dão em torno da amizade de Riobaldo, o narrador, e Diadorim, uma personificação de várias dualidades (masculino/feminino, desejo/repulsa, sagrado/profano, certeza/dúvida). Alfred Hitchcock dizia não compreender a vontade de adaptar livros icônicos ao cinema, uma vez que era preferível trabalhar com matrizes literárias de menor envergadura para, a partir de suas boas ideias, poder criar algo com maior valor artístico. Mas, há aqueles autores instigados pelo diálogo com as obras-primas, casos de Guel e Furtado, arquitetos dessa versão que desloca a ação de Guimarães Rosa à contemporaneidade na qual o sertão não virou mar, mas é uma favela emaranhada. Riobaldo (Caio Blat) fala como se estivesse dando depoimento a um documentário. Seus relatos partem da infância no lugar pobre onde encontrou o menino Diadorim, que virou amigo de vida e professor de valentia, passam pela guerra persistente na periferia, até chegar à sobrevivência improvável num cenário em que matar ou morrer é separado apenas por um fio.
Grande Sertão não vira as costas à literatura, muito pelo contrário. O roteiro assinado por Guel Arraes e Jorge Furtado preserva o lirismo do original escrito que, combinado com a encenação propositalmente próxima ao teatral, se encarrega da grandiloquência poética ao filme. Então, diferentemente das produções que tentam apagar as pegadas linguísticas de suas matrizes, quiçá em busca de emancipação, o longa-metragem dirigido por Guel Arraes tem por princípio manter os fortes vínculos semânticos entre a literatura e o cinema. Já os códigos teatrais servem como argamassa a fim de relacionar as imagens e as palavras, fazendo-as irmanadas como se fossem os inseparáveis Riobaldo e Diadorim. São indícios disso as falas empostadas, a movimentação cênica característica do palco e a valorização do artifício para contar essa trama cheia de dores. Guel não está em busca de uma leitura objetiva, tampouco camufla os artifícios em prol de uma sensação de veracidade menos fantasiosa. Para dar conta de uma epopeia grandiosa como essa, que contém tintas, traços e tonalidades shakespeareanas, o realizador pernambucano escancara a utilização dos dispositivos, como o CGI que serve para mostrar a amplitude da favela Sertão. Portanto, a fim de fazer jus a essa trama maior do que a vida, ele refuta uma abordagem realista, sem com isso abdicar de correlacionar a história oriunda do livro e as nossas tristes realidades.
Ambientado no mundo convulsionado pela guerra urbana, Grande Sertão estabelece relações ambivalentes entre legalidade e bandidagem, às vezes borrando as fronteiras ao ponto de ambas se confundirem. Zé Bebelo (Luis Miranda), coronel responsável pela ordem, é ora nobre em sua missão legalista, ora egoísta por conta dos próprios anseios políticos. Seu antagonista imediato, Joca Ramiro (Rodrigo Lombardi), líder da bandidagem, exibe crueldade e justeza, a depender do inimigo e da circunstância em questão. A adaptação de Guel Arraes e Jorge Furtado mantém os personagens como figuras complexas, impossíveis de determinar sem algum reducionismo. São produtos do meio no qual não cabem retidão e crueldade extremas, pois esses comportamentos são intercambiáveis. No meio disso tudo, Riobaldo deixa o magistério para seguir o coração, precisamente a fim de se manter ao lado de Diadorim (Luisa Arraes), o amigo crescido que virou jagunço perseguido pela polícia. Se antes nesse texto foram citados tons shakespeareanos é porque Guel Arraes enfatiza o som e a fúria de uma natureza humana observada como condição errática e propensa à tragédia. Algo também personificado pela mulher enlutada vivida por Mariana Nunes, símbolo doloroso das mães cotidianas que perdem filhos precocemente para a fome das batalhas urbanas, aqui representadas como as vítimas maiores de um círculo vicioso.
Integrado a essa proposta narrativa distante da realidade na forma, mas comunicativa com ela em termos de conteúdo, o ótimo elenco é um dos principais trunfos de Grande Sertão. Eduardo Sterblitch se destaca como o possuído Hermógenes, talvez aquele que ostente o mais alto grau de maldade dentro do enredo, não à toa uma figura quase sem áreas luminosas (Diadorim celebra a sua lealdade, mas ele se prova um soldado desleal). Luisa Arraes interpreta muito bem o Diadorim febril e valente que carrega o segredo de ser mulher, precisando se vestir de homem para ser aceita na guerra. Aliás, se há um ponto pouco elaborado, ainda mais pensando nessa releitura contemporânea, é o soldado másculo que não admite amor/desejo por seu colega de armas, logo negando qualquer traço queer, mas que no fim das contas é informado de que sua paixão e seu querer “não eram homossexuais” – sendo assim o tesão e o amor pela mulher são quase instintivos. Tirando isso, a teatralização cinematográfica de Grande Sertão Veredas é bem-sucedida, resultado que premia a valentia de Guel e Furtado, a de encarar uma obra monumental e propor a atualização de seus cenários para revelar a infeliz permanência dos temas abordados. Como realizador, Guel poderia conferir ainda mais intensidade às cenas de batalha, mas a isso prefere perder um pouco em fisicalidade e se manter atento ao retrato das convulsões humanas.
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