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Sinopse

Harriet percebe que certas músicas têm o poder de transportá-la ao passado. Literalmente. Enquanto revive as lembranças românticas do ex-namorado, ela acaba encontrando um novo interesse romântico no presente.

Crítica

Para o espectador brasileiro, assistir ao filme Grandes Hits pode provocar uma intensa onda de dèja vú. Não por se tratar de uma refilmagem ou uma continuação, mas pelo simples fato de que o raio pode, sim, cair duas vezes no mesmo lugar. Afinal, o longa escrito e dirigido por Ned Benson parte da mesma premissa que o nacional Evidências do Amor (2024), lançado praticamente ao mesmo tempo (a diferença, aqui, é que um foi para os cinemas, enquanto este chegou diretamente via streaming). Ambos, enfim, se originaram com base em um mesmo conceito, uma verdade universalmente aceita: a capacidade da música, acima de qualquer outra manifestação artística, de transportar aquele que a aprecia a um outro estado emocional, como que uma forma de resgate da emoção vivenciada quando dela pela primeira vez se teve contato. Se, no entanto, na vida real essa é uma expressão figurada, ou seja, mais de sensação e psicológica, nestas duas histórias tal possibilidade é levada ao pé da letra: seja na canção eternizada por Chitãozinho e Xororó, seja numa seleção de sucessos inesquecíveis, o resultado é uma volta ao passado, transportando literalmente o afetado a um momento específico de sua trajetória pregressa. Ao invés de uma comédia romântica, aqui temos um sensível drama de superação. Um pequeno detalhe que justifica o olhar mais atento.

Harriet é conhecida por aqueles com quem convive como ‘Headphones’, ou seja, a garota dos fones de ouvido. E isso por um motivo bem simples: ela vive com imensos aparelhos sonoros ao redor da cabeça, onde quer que vá, a qualquer hora do dia. A intenção não é, necessariamente, ouvir música, mas pelo contrário: o que deseja é não escutar, se alienar de tudo ao seu redor e impedir que canções aleatórias, que possam vir de qualquer fonte – elevador, lojas, a pessoa que se sentar ao seu lado no ônibus, o rádio do carro – cheguem até ela. Não por ser avessa às cantorias. Mas, também, num caminho inverso, por gostar demais destas. E de algumas em particular, aquelas que experimentou durante os momentos mais felizes de sua vida: ao lado do namorado, Max, falecido há dois anos em um acidente de trânsito. A mera lembrança já seria uma tortura. Com ela, porém, a dor dá um passo a mais. Pois cada vez que ouve uma destas composições, mergulha imediatamente em um transe que a transporta para o exato instante em que esteve ao lado dele, quando, juntos, compartilharam da mesma canção. E reviver isso, inúmeras vezes, sem poder alterar o destino das coisas, é algo que ela não está mais disposta a enfrentar.

Porém, como diz o mais sábio, nada como passar dos dias para curar todas as dores. Para cada amor perdido, eis que um novo irá surgir em seu caminho. E com Harriet não será diferente. Ao participar de um grupo de apoio para pessoas em luto, acaba conhecendo David, um jovem que há pouco perdeu os pais. Ele também tem seus traumas, ainda que não de forma tão grave quanto a linda garota que acaba de conhecer. Os dois se aproximam, se beijam, se desejam. Mas quando ela lhe conta o que tem vivido, tal realidade parece ser pesada demais, não apenas para se lidar, mas acima de tudo para se acreditar. Como assim, alguém capaz de voltar no tempo e estar, para sempre, conectada a uma antiga paixão? Quem iria querer esse tipo de fantasma? A maneira como ambos irão se portar diante deste contexto, e a busca por uma solução, se não ideal ou fantasiosa (além da conta), mas ao menos próxima do possível, responde pelo maior dos méritos dessa trama singela, mas tocante: uma impressionante sensibilidade em se colocar no lugar do outro. O que você faria diante do inexplicável? E o que estaria disposto a abrir mão em nome da segurança daquele que mais ama? Amar diz respeito ao seu querer, ou deixar o outro feliz é suficiente?

Ned Benson, após uma série de curtas-metragens, estreou como realizador com um projeto ousado: Dois Lados do Amor (2014), drama que se desdobrava em ainda duas outras versões – Ele e Ela, lançadas um ano antes. Por melhores que tenham sido as intenções, o resultado ficou aquém do esperado, e após uma passagem pelo universo dos super-heróis (é dele o roteiro de Viúva Negra, 2021, outro projeto frustrado, dessa vez pela pandemia do Covid-19), o cineasta retorna com uma proposta menos ousada, mas ainda assim cativante. Grandes Hits não tem pressa em aprofundar seus eventos, e uma vez que sua lógica interna é exposta, caberá aos personagens descobrir como lidar frente ao mistério que lhes é posto. Lucy Boynton, conhecida por ter participado de musicais como Sing Street: Música e Sonho (2016) e Bohemian Rhapsody (2018), tem pela frente esta figura ingrata, que foge da música e faz dela sua inimiga, até perceber que será por meio deste mesmo exercício que conseguirá vencer sua dor. Ao tentar se esconder, acaba eclipsada por seus pares românticos. David Corenswet, ainda antes de usar a capa do Superman, repete o mesmo tipo da série The Politician (2019-2020): o namorado perfeito que, após morto, dificilmente será superado. A surpresa está mesmo em Justin H. Min (Treta, 2023), que no papel de David é o único a emprestar alguma luz a um entorno sombrio e por demais melancólico. Por mais que tenha suas amarras, é aquele capaz de olhar para frente, e sua interferência será fundamental para o andar dos acontecimentos.

De forma objetiva e sem perder tempo com distrações, Grandes Hits é mais um estudo sobre a perda e o desprendimento para ir adiante e menos uma história fantasiosa sobre viagens no tempo e artimanhas amorosas. Benson não evita de escorregar em alguns clichês bastante manjados – a protagonista não só tem um melhor amigo sem profundidade alguma, servindo apenas de ouvido para os seus desabafos, como ele representa não apenas uma, mas duas minorias de uma só vez: o rapaz é negro e gay, duas condições que em nada acrescentam ao quadro geral – mas, ao mesmo tempo, demonstra carinho e sinceridade em sua fé na possibilidade do amor. Isso, ao menos no que diz respeito ao cerne da sua história, torna legítimo se deixar levar por sua convicta esperança em um dia melhor. Não esquecer, mas colocar cada sentimento no seu devido lugar. Afinal, assim como uma boa canção de outrora, cuja memória é importante, mas não deve ser capaz de ditar as decisões do presente – e do futuro – também são os relacionamentos, eternos no durante, mas não mais do que ricas lembranças uma vez que são deixados para trás, seja por vontade própria, ou por obra do destino.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.

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