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Sinopse

Depois de errar a previsão da chegada de uma terrível tempestade, o meteorologista Miguel Flores decide dar um tempo dos holofotes. Ao retornar para a sua cidade natal, ele inicia uma linda e edificante jornada de autodescoberta.

Crítica

No estudo das narrativas, a palavra tropo é utilizada para designar modelos repetidos à exaustão – que podem ser reconhecidos tanto nas tramas quanto nos personagens. O filme argentino Granizo é construído em torno de uma dessas fórmulas reutilizadas ao ponto de provocar fartas doses de familiaridade e previsibilidade: o homem que alcançou o topo do mundo é obrigado a regressar à terra natal para se reconectar com a sua essência e assim ser digno da volta triunfal. Miguel (Guillermo Francella) é exatamente esse tipo de sujeito. Meteorologista famoso, ele está prestes a estrear o “primeiro show do tempo da capital argentina”, atração que nasce com a expectativa de ser bastante popular. O cineasta Marcos Carnevale flerta com o absurdo a partir da inusitada premissa, afinal de contas a possibilidade da meteorologia se tonar um fenômeno midiático não deve passar nem pelos sonhos dos meteorologistas mais ambiciosos. O protagonista sai à rua e é ovacionado pelos vizinhos, parado para tirar selfies, celebrado ao chegar à emissora como se fosse a maior celebridade do país. Esse gosto pelo excesso está presente também na cenografia do programa, na pegada kitsch da banda que toca a música-tema do apresentador e na assistente de palco do tipo “perua”. Até aí parece que o longa-metragem vai realmente colocar um tempero próprio nessa estrutura conhecida e requentada.

No entanto, rapidamente vem a decepção. Os exageros de estilo vão perdendo espaço para o que há de mais comum no tropo narrativo citado. Miguel erra feio ao garantir céu limpo para a madrugada posterior à sua estreia. Buenos Aires é atingida por uma torrencial chuva de granizo que deixa um rastro de destruição. Muitos foram prejudicados por acreditar na previsão  – do casal que perdeu o cachorro de estimação ao taxista que teve seu automóvel parcialmente destruído. Por conta desse erro excepcional, Miguel cai numa desgraça de dimensões proporcionais às do sucesso de antes. O roteiro assinado por Fernando Balmayor e Nicolás Giacobone pontua a inversão de perspectiva ao voltar a todos os coadjuvantes que festejaram Miguel antes da tormenta, mas que o tratam com desprezo no dia posterior à chuvarada. Cancelado, o homem perde a posição no canal de televisão, é hostilizado nas ruas e nas redes sociais e, sem alternativas, resolve se esconder na casa da filha na cidade de Córdoba. Já vimos esse filme antes, centenas de vezes, mas talvez nunca com um meteorologista como protagonista. Porém, a profissão de Miguel não faz a mínima diferença para o desenvolvimento da história. Nem seu comportamento reflete o apreço pela lógica matemática das previsões do tempo. E isso é um dos indícios da falta de consistência na concepção de um protagonista quase vazio.

Aliás, o grande problema de Granizo não é seguir estritamente a fórmula surrada, mas nem isso conseguir direito. Nesse tipo de história, geralmente há uma ênfase inicial na personalidade egocêntrica resultante da contaminação pelo sucesso. O retorno à terra natal se trata justamente da possibilidade de retroceder simbolicamente ao terreno (geográfico/afetivo) que o faça perceber “o que verdadeiramente importa”. Miguel não é desenhado como um interiorano modificado pela fama na capital. Claro que ele tem o ego inflado por ser visto como um “deus da meteorologia” (?), posição que o faz brigar pela integridade de sua ideia de programa televisivo, por exemplo. Porém, nada que faça dele alguém que precisa desesperadamente de um aprendizado para voltar a ser uma pessoa melhor. Miguel tem problemas, traumas do passado, dificuldades de relacionamento, mas isso não justifica o trajeto de reconquista dos méritos para voltar a ocupar o lugar de destaque na sociedade. Nem os diálogos com a filha médica e independente, Carla (Romina Fernandes), servem para consolidar um percurso de redenção. Portanto, Granizo abre os braços a diversas convenções desse tipo de filme e os explora mal. O resultado disso é uma história frouxa sustentada pelo talentoso elenco.

Com quase 120 minutos de duração, Granizo é um filme prolixo que fica dando voltas em torno de pequenas questões pouco resolvidas em vez de seguir direto aos pontos principais. Todo o trajeto de reconexão de Miguel com Carla é feito de micro embates sem intensidade, mesmo quando os dois estão tentando despejar no outro as mágoas que os separaram. Há altos e baixos nesse processo genérico de Miguel rumo à filha. A cena no hospital com o menino doente sinaliza um recomeço, mas a sugestão (bem comportadinha) da suruba não é mais que uma tentativa desajeitada de fazer graça. Toda a subtrama do taxista é descartável. Se fosse retirada do filme, significaria um prejuízo ínfimo à abordagem dos efeitos da previsão furada nos cidadãos comuns. Um preço relativamente pequeno se isso significasse também tirar de cena toda a lengalenga envolvendo a esposa descontente e o sogro nonagenário que deseja morrer. Guillermo Francella é um intérprete suficientemente competente e tarimbado para sustentar o interesse nesse trajeto capenga e previsível de seu personagem. Já o cineasta Marcos Carnevale desperdiça a potência de elementos subjacentes, como as diferenças fundamentais (e filosóficas) entre a previsão científica e o processo envolvendo a crença no mistério.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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