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Sinopse

Hans é um homem alemão e gay. Devido ao parágrafo 175 do código penal pós-guerra, sua orientação sexual pode levá-lo à prisão. Durante mais de vinte anos, ele é enviado diversas vezes ao cárcere, onde acaba desenvolvendo uma amizade inesperada com Viktor, detento heterossexual condenado a uma longa pena.

Crítica

O diretor Sebastian Meise possui uma maneira bastante franca de representar a sexualidade entre homens. Great Freedom (2021) se inicia com uma intensa sucessão de “banheirões”, ou seja, encontros casuais entre homens gays em banheiros públicos. Ao invés de esconder corpos por pudor, ou de fetichizá-los para a excitação do espectador LGBTQIA+, ostenta uma frieza documental por meio de registros em película 16mm. A homossexualidade é vista pela primeira vez por um prisma fatual, quase antropológico. Hans (Franz Rogowski) é confrontado a tais registros escondidos de atos praticados com outros rapazes, sem demonstrar remorso nem raiva. Ele sabe o veredito que lhe espera: a prisão, destino reservado aos praticantes de “atos perversos” na Alemanha pós-guerra. O protagonista constitui um homem assumida e orgulhosamente gay, ainda que esteja distante da figura efeminada caricatural. Um mérito notável do drama se encontra na concepção de integridade moral aliada a uma composição firme e bruta do ator principal. Por mais comoventes que sejam os homens efeminados de produções como O Beijo da Mulher Aranha (1985), faltava ao cinema conceber a imagem do macho homossexual. Rogowski, ator versátil e experiente, abraça Hans com impressionante maturidade.

Partindo deste início provocador, o cineasta se dedica a um estudo dos afetos e das pulsões no meio carcerário ao longo dos anos. A extensão da trama, entre o fim da Segunda Guerra Mundial e o fim dos anos 1960 permite que ele sublinhe a duração da vigência do parágrafo 175, e coloque a trajetória de seus heróis em paralelo à transformação da Alemanha, entre os resquícios do Nazismo e a Guerra Fria. Ele evita converter seus protagonistas em homens inerentemente violentos: uma vez acostumados à rotina das celas e pátios, eles fazem amizades, confessam seus desejos e buscam carinho - de modo mais ou menos assumido. Meise evita o fetiche punitivista do estupro masculino ao privilegiar uma sexualidade reparadora: até homens heterossexuais encontram na companhia de outros homens (gays ou héteros) uma forma de conforto necessária. O longa-metragem humaniza o espaço de reclusão, de forma talvez seja considerada amena demais para alguns espectadores, mas será vista como leve e terna por tantos outros. Em outras palavras, o autor evita uma enésima descrição espetacular da vida na prisão, pelos olhos confortáveis de quem observa brigas e violências a uma distância confortável e pouco empática.

Em contrapartida, as idas e vindas no tempo prejudicam a fluidez do resultado - não por tornarem a experiência confusa, graças aos letreiros explicativos, e sim pela ausência de variação evidente entre esses períodos. Hans é conduzido à mesma prisão em 1945, 1957 e 1968, entretanto, ele parece ter idade semelhante em todos estes períodos, apresentando trabalho ínfimo de envelhecimento pela equipe de arte - alguns cabelos grisalhos aqui e ali. Os romances com novos rapazes se sucedem em tal velocidade que atenua sua potência: a paixão imensurável por Oskar (Thomas Prenn) soa abrupta, ao passo que o relacionamento carinhoso com Leo (Anton von Lucke) se encerra sem deixar marcas profundas na narrativa. O autor se interessa de fato apenas pela cumplicidade ímpar entre o herói e Viktor (Georg Friedrich), sujeito heterossexual que permanece na prisão durante as chegadas e partidas do jovem gay, graças a uma extensa pena por homicídio. A aproximação segue um caminho previsível, da repulsa homofóbica à conexão fusional, apostando na redenção contra o preconceito por meio do afeto. O discurso aposta na crença otimista de que a boa vontade pode superar feridas históricas, preceitos morais e religiosos - algo cada vez mais questionável em tempos contemporâneos. No entanto, o texto preserva a idealização de que a convivência entre opostos tende a atenuá-los rumo a um meio-termo de entendimento. 

Ao menos, o ponto de vista simples ganha uma execução eficiente, através de um trabalho seguro de câmera e de mixagem de som, navegando sem percalços entre o ultrarrealismo (a entrada na prisão) e o realismo fantástico (o sexo de madrugada, no pátio). As sequências na solitária são acompanhadas de um escuro profundo, com a tela preta oferecendo ao espectador a experiência simbólica da solidão completa, enquanto as refeições e cenas de sono fogem ao estereótipo do perigo, do nojo e do medo. Meise evita transformar a prisão num local agradável, mas faz o possível para se dissociar do prazer do choque. Embora os demais internos estejam ausentes (há apenas quatro personagens com real destaque na narrativa inteira), e a situação carcerária nunca evolua em si mesma (encontros com advogados e juízes são secundários), elabora-se uma demonstração de leveza respeitosa e um tanto pudica - a única morte violenta será sugerida fora de quadro, pelos sons, e após uma agressão séria, a vítima reaparece sem ferimentos num salto temporal. Para o bem ou para o mal, o cineasta faz o possível para não incomodar o espectador, sendo mais incisivo na representação do sexo do que nas agressões.

Infelizmente, Great Freedom abraça um discurso fatalista. O drama passa a cogitar a possibilidade que estes homens fiquem traumatizados de maneira irreversível, e que, no fundo, se sintam melhor atrás das grades do que na vida em sociedade. Os rapazes gays da trama são condenados à solidão, ao desemprego, ao suicídio e à criminalidade crônica. Uma vez identificados pelo sistema enquanto homossexuais, terão um destino piedoso e punitivista - “não há amor feliz”, como diria a canção francesa. Meise estima honrar estes homens ao mergulhar nos aspectos frágeis de sua psicologia, entretanto, pela recusa em conceber um único gay capaz de furar a bolha da depressão ou morte, converte seu longa-metragem numa cautionary tale, ou seja, uma fábula de precaução quanto às dificuldades infinitas de amar uma pessoa do mesmo sexo. Referindo-se a um contexto real de décadas atrás, sustenta um discurso comum a tantos dramas das décadas de 1970 e 1980, quando os espectadores eram convidados a lamentar e temer pelos personagens gays - a identificação se confundia com paternalismo. A conclusão opta por um ciclo vicioso de perversidades, associando a homossexualidade à degradação e à criminalidade. Os gays sofriam muito antes e, sem dúvida, ainda sofrem hoje, apesar dos avanços legais. Ora, julgando por este discurso, o calvário do gay assumido apenas se moderniza, mas jamais se rompe - nem simbolicamente, nem concretamente. “Não há gay feliz”, neste caso.

Filme visto na 45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em novembro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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