Crítica


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Sinopse

Dora é uma adolescente criada na Alemanha. Pela primeira vez, ela visita sua enigmática avó no Brasil. Enquanto tentar voltar à Europa a todo custo, a jovem começa a descobrir a incrível história por trás das mulheres de sua família.

Crítica

Por uma infelicidade do circuito, Guerra de Algodão é exibido nos cinemas nacionais pouco depois do lançamento de Deslembro (2018), de Flávia Castro. Neste último, uma jovem brasileira, criada na França, retorna ao Brasil durante a adolescência para descobrir um país que não lhe pertence mais, nutrindo uma relação especial com a avó progressista e afetuosa. Em Guerra de Algodão, a protagonista é uma jovem brasileira, criada na Alemanha, que retorna ao Brasil durante a adolescência. Ela precisa descobrir o Brasil e atar laços com a avó feminista e carinhosa. A mãe, em ambos os casos, está fisicamente ausente. Uma diferença essencial separa os dois, no entanto: enquanto Joana (Jeanne Boudier) travava contato com a ditadura militar, Dora (Dora Goritzki) descobre apenas a si mesma. Sua revolta contra o novo lar faz parte de uma rebeldia juvenil sem conotação política ou representação social mais ampla.

Este estudo de passagem à fase adulta poderia ser fascinante caso Dora não fosse uma protagonista tão inconsistente. A garota se manifesta belamente através das artes (ela dança, canta, toca), mas despreza os quadros pintados pela avó artista. Ela busca se integrar num círculo de jovens baianos e, uma vez aceita, para de frequentar o grupo. Ela luta para obter dinheiro por vias ilegais, e uma vez conquistada a soma, abandona o cheque generoso. Ela luta por uma independência através do consumo, porém quando obtém condições para tal, gasta seus esforços numa compra gigantesca de biscoitos recheados no supermercado. Afinal, o que Dora deseja? Onde estão suas pulsões, seu desejo sexual, seus planos para o futuro? O que a garota pretende fazer além de estabelecer sua própria “guerra de algodão” (vista como uma guerra inventada, sem estofo para tal) contra a avó que tolera seus mais diversos caprichos?

Como se não fosse difícil o bastante se identificar com a jovem mimada, o filme aposta numa rigidez excessiva da mise en scène. Os diálogos são artificiais, entoados através de pausas incompatíveis com o registro oral. A montagem começa e termina as cenas um segundo antes e depois de o conflito se estabelecer, de modo que os personagens permanecem parados em cena, como se aguardassem o “ação!”, para começarem a existir. Os enquadramentos não permitem grande expressividade nem aos atores, nem às danças ou à capoeira. A cena inicial, quando as duas mulheres se encontram no aeroporto, resume o caráter posado que se mantém ao longo de toda a narrativa. Antes de ser jogada num rio, por exemplo, Dora aguarda pacientemente, corpo rígido e olhar perdido, no centro do enquadramento, até o conflito acontecer.

A falta de dinamismo compromete a intenção de trabalhar um ideal de sororidade através das gerações. Guerra de Algodão visa empoderar Dora pelo contato com a avó libertária, que questionou as regras da cena teatral de décadas atrás com suas composições de mulheres livres. A garota, fruto da individualidade do século XXI, herdou apenas uma rebeldia sem polimento, do tipo que empurra assediadores na rua bruscamente, mas se vê incapaz de articular qualquer discurso preciso a respeito. A ideia de uma transmissão feminina é diluída não apenas pelos diálogos didáticos (“Se [os homens fossem presos por assediarem as mulheres], ia ter que prender todos os homens”) mas também pela composição pouco expressiva de Dora Goritzki no papel principal. Os silêncios são bem-vindos dramaticamente quando preenchidos pela atuação, ou seja, quando indicam desconforto, desejo, remorso etc. No caso da protagonista, as diversas perguntas disparadas por coadjuvantes encontram um corpo bruto, inerte, incapaz de fornecer uma resposta pelo olhar.

Ao final, os diretores Marília Hughes e Cláudio Marques transparecem otimismo quanto às possibilidades de transformação pessoal e de encontros entre as diferenças. Mesmo que os laços sejam atados de maneira brusca, e quase mágica no terço final, eles refletem a crença numa transmissão de ideias e valores por meio da arte – vide a sugestão cíclica da dança no jardim enquanto representação da herança entre Dora e a avó. O projeto é muito bem-intencionado ao incluir debates sobre questões raciais e de classe social, além de abordar o complexo de vira-lata dos segmentos privilegiados em relação à cultura nacional. Faltou, no entanto, trabalhar os tópicos de maneira fluida, sem se prender à disposição teatral da encenação nem aos imperativos fabulares da narrativa.

Filme visto na 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2019.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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