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Sinopse

Durante a Guerra Fria, entre a Polônia stalinista e a Paris boêmia dos anos 1950, um músico amante da liberdade e uma jovem cantora com histórias e temperamentos completamente diferentes vivem um amor impossível.

Crítica

Vencedor do prêmio de Melhor Direção no Festival de Cannes 2018, Guerra Fria é, antes de qualquer coisa, um deleite visual. A fotografia a cargo de Lukasz Zal, que já havia colaborado com o cineasta Pawel Pawlikowski no igualmente bonito e contundente Ida (2013), se destaca pela precisão dos enquadramentos e a forma como utiliza expressivamente o preto e branco. Extraindo das paisagens as suas belezas, por vezes melancólicas, ele consegue ampliar emocionalmente instantes de aspereza e desencanto, vide as vezes em que os personagens se deparam com os problemas da situação político-social da Polônia stalinista, no fim dos anos 40, ou seja, imediatamente após o fim do período nazista. De maneira semelhante, a imagem (quadrada) reforça o estado de espírito das pessoas, desempenhando funções distintas na efervescente Paris e na depauperada terra natal, por exemplo. O começo tem ares documentais, com profissionais trafegando pelo interior a fim de registrar canções folclóricas, propiciando um resgate vital.

Guerra Fria entremeia os traços relativos à coletividade com o crescente interesse do maestro Wiktor (Tomasz Kot) pela enigmática e talentosa Zula (Joanna Kulig). O passado repleto de controvérsias e histórias mal contadas não é suficiente para afastar o veterano da loira. Durante a produção de um espetáculo fundamentado, exatamente, na tradição polonesa, na perpetuação da cultura característica do povo campesino, esse desejo assume contornos efetivos, transformando-se num amor que parece fadado a permanecer vivo, mas a nunca atingir a plenitude. O roteiro é sucinto, conseguindo a proeza de abarcar cerca de quinze anos da experiência múltipla dos protagonistas, recorrendo frequentemente a elipses muito bem colocadas. O percurso transcorre em países diferentes, cada qual com construções artísticas particulares. Em momento nenhum Pawlikowski desassocia a senda de desencontros do casal apaixonado das conjunturas relativas aos posicionamentos oficiais, aos ditames dos Estados e às suas discrepâncias.

Na medida em que Guerra Fria avança, porém, as questões de ordem privada ganham relevo, com Wiktor e Zula batendo cabeça, enfrentando fantasmas próprios, cruzando fronteiras, literal e metaforicamente falando, em busca da tão almejada felicidade a dois. Joanna Kulig principia o filme como uma menina vivaz, prontamente encantando o músico que vê nela, para além da técnica vocal, a existência de uma alma. O envolvimento deles oscila de acordo com o decurso do tempo e as variações dos humores governamentais, iniciando como um caso furtivo, vivenciado longe dos olhares próximos, virando um relacionamento obsessivo e conturbado por empecilhos diversos. Com esses movimentos de maior atenção à esfera íntima, o entorno naturalmente reassume a posição de contexto, sem que para isso haja um esvaziamento do discurso político. Diferentemente do começo, explicitamente manifestante, vicissitudes do coração sobrepujam paulatinamente observações sociais. Chega-se com isso a um fino equilíbrio.

Na primeira metade de Guerra Fria fica evidente a importância da cultura para os personagens, bem como a um país que esteve prestes a ser completamente subjugado. Já na segunda, o conjunto é mais lacunar, voltado ao amor condenado a sucumbir diante do destino, da arbitrariedade das autoridades ou da falta de jeito de Wiktor e Zula para a compreensão mútua. É como se eles carregassem, por onde forem, um considerável peso extra não apontado como decorrência da ocupação nazista e da posterior sanha stalinista, mas perfeitamente assim compreensível. Voltando à seara imagética, encarregada de exteriorizar a angústia dessas figuras afetivamente errantes, ela cumpre exemplarmente sua função, ajudando a remontar a vários cenários, como a boêmia França dos anos 50/60, a tensa Iugoslávia do mesmo período e a Polônia que tentava resgatar sua essência nativa dos escombros. Nesse sentido, os amantes são vítimas de um tempo de mudanças, incompatível com o seu amor inviável em vida, pois avesso às inconstâncias e à nova Era que se desenha.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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