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Crítica


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Sinopse

De modo completamente aleatório, dois amigos acabam descobrindo uma série de coincidências. Eles estiveram na mesma data, na mesma cidade e com as mesmas pessoas em dado momento. Suas memórias acabam se misturando.

Crítica

Na Coréia do Sul, dois amigos, um crítico de cinema e um cineasta, se encontram antes de um deles embarcar em viagem para o Canadá, no Ocidente distante. Eles resolvem ir a um bar e, entre uns e outros goles, vão contando suas atividades recentes. No verão sul-coreano, ambos estiveram recentemente na mesma cidade, nos mesmos lugares, conheceram as mesmas pessoas e viveram alguns problemas semelhantes. Em Hahaha, Hong Sang-soo filma o que é possível ser filmado e pouco mais. Funde o corpo-objeto (a obra mesma) e o corpo-olhar (o espectador em si) num só dispositivo de ligação/conexão, transpõe a barreira do encantamento, que representa apenas um primeiro olhar – nem é preciso pedir licença para partir de uma premissa rigorosamente fabulosa numa história que se pretende verdadeira (e é). Seu cinema é isso aí, um abraço muito forte naquilo que vive, criador desse jogo suculento de reciprocidade, desse entrevero de potencialidades e transfigurações. Esses espaços humanos nos quais construímos laços e ideias e essa confraternização minimamente prazerosa do diálogo é o material básico (pois sem excessos) do seu Hahaha.

Mas o humor que toma conta do filme não idiotiza os personagens (o faz apenas na medida em que nós somos um pouco idiotas mesmo). O riso enrosca suas tranças facilmente com a simplicidade do drama (isso está ali quando um deles leva umas chineladas da mãe na frente algumas pessoas), que polariza e carrega a narrativa atravessando uma história permeada por acontecimentos inusitados pelos quais os dois amigos passaram. A fruição do mundo é toda essa paixão filmada, amplificada pelos sorrisos que acompanham o trago e pelas lágrimas que se misturam com a chuva. As coisas filmadas não são objetos quaisquer que se oferecem à tela, mas antes surgem cheias de informações visuais que não se separam do discurso central, pois se imbricam à ela. A desmitologização de que falam os teólogos existe, aqui, em forma de consciência (e de síntese) dramática. Tudo está cinematizado.

O pragmatismo das imagens que Sang-soo reproduz é também um órgão de seu corpo – seu corpo-cinema. Cada cena poderia existir independentemente como registro de momentos (à memória, claro), pois possuem camadas sensitivas que expressam muito do conteúdo estético empregado pelo cineasta (quase um cinema de fluxo) e possui a missão de estabelecer uma narrativa que possa ser seguida livremente, sem se inscrever religiosamente em um código ou em dogmas. Sang-soo as escolhe e as coloca assim, com essa luz (a luz de Hahaha não é mais que a luz natural, em grande parte das cenas), provavelmente porque quer vê-las germinar diante do olho interminável da câmera. Nesse sentido, é perceptível o traço mais íntimo que separa essas imagens tão simples e tão potentes em relação aqueles olhares pesados e às vezes desconectados do mundo, como os que vemos em Kim Ki-duk e Lee Chang-dong (que são cineastas que também filmam com certo calor quando não se perdem no fugaz e no torpor, como em A Ilha, 2000, e Green Fish, 1997, respectivamente). Porque o cinema também pode ser um pouco verdadeiro, apesar de mentiroso.

Essa natureza que compõem os planos é uma das grandes habilidades de Sang-soo: o jeito de olhar para uma conversa – filmar a coisa mesma, com o mínimo de intervenção estética. A câmera quase nunca diz que está lá, exceto naquele zoom-in característico que antecede o corte. Ele é assim porque descobre um mundo com um movimento (só da objetiva, pois a câmera não se move). Já basta para ela captar a expressividade dos corpos, a ginga dos movimentos e a fruição das coisas que fazem pano de fundo. Enquanto os personagens dançam (sim, no sentido metafórico) para o dispositivo e colocam suas questões de forma nada alegórica, aí as imagens tomam conta do resto: salvam aqueles instantes fugidios em uma operação de captura do essencial. Esse sim um cinema difícil de ser enquadrado nos conceitos de gênero. Quando o filme acaba, os personagens continuam ali, ainda buscando experimentar sensações, provar, gozar mais. Desejantes, pois. Eis a possibilidade de pensarmos nas imagens de Hahaha como permanentemente férteis. O embaralhamento das histórias, feito mesmo desse jeito, com uma montagem eficiente em sua simplicidade e em diálogo pungente com todo o projeto estético de cinema que Sang-soo traz consigo. Não há porque, aqui, filmar o céu e o mar para imbricar psicologismos. Ao contrário, os planos cuidam dos personagens certamente porque gostam deles, dedicando-lhes o olhar duradouro e criterioso (nunca covardemente evasivo). No cinema sul-coreano do novo século, Sang-soo é a expressão dessa experiência das riquezas, da captura que pulveriza a tensão dos corpos e expõe os instantes mais triviais e discretos que atravessam o mundo e as relações humanas.

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do RS. Edita o blog Tudo é Crítica (www.tudoecritica.com.br) e a Revista Aurora (www.grupodecinema.com).
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