Crítica
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Crítica
Michael Haneke volta a examinar as entranhas da burguesia francesa através de seu olhar cínico, e quase sempre fatalista, em relação à humanidade, porém, adicionando a este uma carga irônica mais acentuada do que o habitual. Com Happy End, o austríaco traça um paralelo com dois de seus principais trabalhos, Caché (2005) e Amor (2012), seja por meio dos nomes/sobrenomes de seus protagonistas ou, mais destacadamente, da revelação feita pelo patriarca da família Laurent, Georges (Jean-Louis Trintignant), à neta Eve (Fantine Harduin), sobre a morte de sua esposa – que contém uma referência direta ao longa anterior de Haneke estrelado pelo próprio Trintignant e por Emmanuelle Riva. Outra ligação surge com a presença de Isabelle Huppert - novamente colaborando com o cineasta – que interpreta Anne, a filha mais velha de Georges.
É justamente a personagem de Huppert que se apresenta como a coluna sustentadora da edificação familiar, zelando pela manutenção das aparências e buscando contornar todos os problemas que a cercam enquanto lida com os preparativos de seu casamento com Lawrence (Toby Jones): a senilidade do pai e suas tentativas de suicídio, o comportamento errático do filho alcoólatra, Pierre (Franz Rogowski), desconfortável na posição de herdeiro dos negócios do avô que, por sinal, passam por momentos turbulentos após o acidente em um canteiro de obras que vitimou um operário. Há ainda a integração de um novo elemento ao círculo dos Laurent, Eve, filha o adúltero irmão de Anne, Thomas (Mathieu Kassovitz), obrigado a acolher a garota devido ao grave estado de saúde de sua ex-esposa.
Sobre essa premissa novelesca, Haneke constrói uma estrutura narrativa apoiada no distanciamento calculado que marca boa parte de sua obra, Mesmo não imprimindo quebras mais incisivas e de impacto, como em trabalhos anteriores, a construção do cineasta ainda se mostra precisa em passagens pontuais, como aquelas nas quais os diálogos são omitidos e a câmera se coloca como uma observadora passiva, de aura quase voyeurística, sem que a compreensão do contexto fique prejudicada. Seja uma compreensão imediata, como na cena em que Pierre visita a família do operário, ou posterior, servindo ao estabelecimento de um traço enigmático, como quando Georges sai pelas ruas na cadeira de rodas e interpela um grupo de homens negros. Mais contido, o estilo de Haneke mantém sua força, abrindo espaço para explorar a questão do tratamento da imagem no mundo contemporâneo.
Uma característica evidenciada na sequência inicial filmada de modo a emular a captação do celular de Eve, ilustrada por suas anotações, e que se estende tanto à câmera de segurança que registra o acidente na obra quanto ao vídeo do Youtube assistido pela jovem garota ou ainda à tela do computador de Thomaz que exibe os e-mails, e mensagens via Facebook, de teor sexual trocados com sua amante. Haneke se utiliza dessas ferramentas com algum sarcasmo, até mesmo demonstrando desdém, não por compreendê-las como inválidas, mas por parecer se ressentir do efeito colateral da banalização da imagem resultante de seu uso massificado. O mesmo ar debochado envolve o tratamento dispensado à burguesia por ele retratada, reduzindo a gravidade do tom e ressaltando o que há de patético nessas figuras pela via do humor negro, capaz de provocar risos sem diluir o incômodo das situações.
Tal qualidade é latente em cenas como a de Pierre no karaokê, esticada até o limite pelo austríaco, no embate anterior do mesmo com a mãe em seu apartamento, em todos os jantares em família ou no diálogo de Georges com o barbeiro, chegando ao ápice durante a festa de casamento de Anne e Lawrence. Na trajetória de exposição da sordidez e decadência burguesa, Haneke não deixa de cair em alguns lugares-comuns e representações demasiadamente explícitas – vide o momento em que um alterado Pierre interrompe a celebração do aniversário do patriarca para exaltar a cozinheira da família, a “escrava marroquina” dos Laurent. Contudo, de modo geral, os questionamentos possuem sua relevância, compondo um cenário ao qual o espectador é convidado a se integrar, mantendo a devida distância.
Assim como os imigrantes africanos trazidos por Pierre ao casamento da mãe – num breve aceno ao tema da crise dos refugiados na Europa – que acabam sendo convidados a ficar numa mesa de canto, nos fundos, próxima à saída, tentando compreender o tumultuado universo que acabam de adentrar, Haneke nos convoca a presenciar essa passagem geracional de bastão, cuja receptora é Eve, iniciada no revelador e estreito diálogo entre ela e o avô no escritório. Pois é a garota que simboliza o futuro, a próxima dona do poder, que já se mostra detentora do domínio sobre a imagem no prólogo, algo que se repete no desfecho, e que carrega toda a herança de caráter da família – as tendências suicidas, o cinismo e até o sadismo (na cena em que mistura o calmante da mãe à comida do hamster, compartilhando um vídeo da “experiência” na internet). Prova de que Haneke segue enxergando uma imutabilidade no estado das coisas, com a única modificação sendo a forma sob a qual é vivenciado: aglutinado dentro dos limites da tela retangular dos smartphones.
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