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Crítica


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Sinopse

Carolina Flores é uma militante feminista que trabalha como stripper na periferia de Santiago, no Chile. Ela se identifica com a personagem da Arlequina, que se torna tanto um fetiche aos clientes quanto um alter-ego no cotidiano. No entanto, seu modo de vida incomoda os vizinhos e os homens com quem se relaciona, obrigando-a a adotar um posicionamento cada vez mais forte.

Crítica

A narrativa leva algum tempo até definir seu foco principal. Carolina Flores faz um ensaio fotográfico sensual, demonstrando irritação com o cenário escolhido. Na cena seguinte, uma adolescente frisa a importância de manter sua produtora em funcionamento, pelo menos até atingir a maioridade. Em seguida, o fotógrafo exibe dentro de casa seus símbolos nazifascistas e descreve a intenção de realizar uma limpeza étnico-racial na comunidade. Ele ainda revela à câmera o talento com armas brancas. A alternância de temas soa tão improvável quanto a sucessão de afirmações acima. Há diversos personagens dentro de Harley Queen (2019), um retrato da marginalidade chilena. Seria fácil para os diretores Carolina Adriazola e José Luis Sepúlveda acompanhar o dia a dia de sua protagonista, uma dançarina exótica, feminista e associada a um nazista nos negócios, tentando compreender suas contradições de pensamento e atitude. Afinal, Flores possui as características de uma mulher independente e proativa, embora limitada pela falta de oportunidades. No entanto, os cineastas abrem o escopo de maneira ampla: poucos minutos após a rápida introdução, descobrimos a heroína participando de uma limpeza doméstica contra espíritos malignos, registrados em estética semelhante àquela de Atividade Paranormal (2007), por exemplo.

O documentário surpreende pela articulação inesperada de roteiro e montagem. A trama se desenvolve em blocos autônomos, dotados de pouca, ou nula, relação entre si. Esqueça as linhas cronológicas ou conexões de causa e efeito: a protagonista é acompanhada em cenas potentes, porém desprovidas de origem e de consequências. A personagem dos quadrinhos, que dá nome ao filme, jamais se justifica a contento: por que Flores teria escolhido esta figura controversa para representá-la? Por que observamos apenas os ensaios de Harley Queen, ao contrário de suas apresentações vestida como tal aos homens pagantes do clubes de strip-tease – algo que seria coerente com a premissa, visto o orgulho da dançarina em relação à sua atividade? De que maneira ela combina o espiritismo, o ativismo nas ruas, a associação com um nazista e o orgulho de exibir seu corpo? O espectador nunca obtém resposta a estas questões. Ao invés de convergir as contradições rumo a uma figura única, o filme desperta a curiosa impressão de retratar mulheres diferentes, numa ficção coral. Descobrimos os conflitos quando são extremos demais, antes de conhecermos a condição de sua existência: por exemplo, um gato é morto em decorrência da briga com uma vizinha, no entanto, a disputa tinha sido ocultada até então.

Caso as surpresas dissessem respeito a fatos secundários, poderiam ser descartadas como elementos à margem do discurso. No entanto, a montagem suprime o contexto e o impacto de dados fundamentais na vida da protagonista. Carolina Flores se casa com Luis, homem inexistente no roteiro, e sequer mencionado em diálogos antes da cerimônia. Uma tragédia envolvendo a morte de duas crianças possuiria impacto maior caso soubéssemos da existência das mesmas. A sequência do incêndio ocorre de maneira tão veloz e desconectada da narrativa que provoca a impressão incômoda de um lapso, uma falha da produção. O que levou os criadores a ocultarem a presença dos meninos, focando-se apenas na irmã mais velha? Uma vez mencionados, o espiritismo, o nazismo, o feminismo e os shows eróticos desaparecem do filme. O que acreditam ganhar com estes blocos independentes, sem desenvolvimento próprio? O símbolo mais claro da condução anticlimática se encontra na conclusão, quando um fade interrompe a cena no meio da ação – novamente, sem consequências para os personagens envolvidos. Adriazola e Sepúlveda conduzem a obra apesar da protagonista, ao invés de junto a ela.

Esteticamente, o documentário assume a postura intermediária entre o cúmplice e o voyeur. Por um lado, a câmera se encontra dentro de casa quando a dançarina ensaia passos sensuais diante da filha pequena, e também no corredor quando a competidora descobre que foi desclassificada por ter mostrado os seios no palco. A dupla de diretores oferece um olhar amigo, sem julgamentos morais, evitando interferir no meio em benefício do filme. Por outro lado, esta atenção se dispersa com facilidade: durante o envenenamento do gato, a imagem deixa Flores de lado para acompanhar as atitudes de outros personagens, e na briga do casamento, a câmera corre para se enfiar entre os dois homens, relegando Harley Queen ao segundo plano. Assim, não enxergamos o mundo pelo ponto de vista dela: a mulher se limita a um objeto de estudo, deixada de escanteio quando a direção encontra algum fator mais empolgante, ou um motor de conflito mais evidente para seguir. Mesmo a delicada relação com a filha se dilui na narrativa: “Mãe, eu sou o Batman!”, brinca a garota o ver a Arlequina sensual rebolando pelo chão. Que compreensão esta menina possui da sexualidade, e de que maneira o imaginário lúdico das histórias em quadrinho se converte em fetiche nas mãos de adultos? Esta rica vertente é desprezada pelos autores.

A protagonista se torna tão descentralizada na própria trama que levanta um questionamento: o que interessou Adriazola e Sepúlveda em Carolina Flores? Acreditaram que sua trajetória excepcional merecia ser retratada ou que, inversamente, representa um caso universal de pessoa à margem do sistema? É difícil pensar em Harley Queen enquanto símbolo do feminismo, visto que sua participação em protestos se resume a uma única cena. A relação emancipada com o corpo tampouco se desenvolve – a sexualidade de Flores é convenientemente ocultada. Os cineastas privilegiam um caso comum, sem extrair um discurso coeso a partir desta vivência, nem buscar uma expressão da beleza do cotidiano. Desconhecemos os problemas com dinheiro, os namoros, a relação com os filhos, a inserção no ramo de stripper. A câmera nunca acorda e vai dormir com sua personagem, acompanhando-a durante um dia inteiro. Temos acesso a fragmentos importantes, incapazes de formar um panorama completo – a exemplo de um quebra-cabeça com peças faltando. Haveria muitas reflexões possíveis a partir desta mulher. Na dúvida, a direção evita mergulhar em qualquer uma delas.

Filme visto online no 11º Festival Internacional Pachamama: Cinema de Fronteira, em maio de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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