Crítica


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Sinopse

Um grupo de amigos encontra o que parece ser a casa assombrada extrema durante o Halloween. A noite se torna um pesadelo quando eles percebem que as promessas da casa são reais e aterrorizantes.

Crítica

De certo modo, os slashers sobre jovens adultos sendo atacados por psicopatas numa cabana na floresta, ou dentro de alguma casa mal-assombrada (onde entram por livre e espontânea vontade) remetem à uma atualização do conto de fadas. Nas histórias infantis, os perigos enfrentados por Chapeuzinho Vermelho no caminho da casa da avó, ou por João e Maria sucumbindo à tentação dos doces, visavam ensinar as crianças que o mundo adulto está repleto de perigos, e não se pode ceder a qualquer oferta de prazer imediato. Essas historinhas nos ensinavam a duvidar da boa vontade alheia ou das situações em que a racionalidade é abandonada em prol dos desejos pessoais. Os cautionary tales de terror operam de maneira semelhante: eles nos avisam sobre os riscos de ceder à tentação, levando uma vida de excessos. Não por acaso, os jovens arrogantes (o rapaz preocupado demais com o próprio corpo, a menina linda obcecada pela aparência) são os primeiros sacrificados pelos vilões. Sobrevivem por muito mais tempo as mocinhas antissociais, as estranhas, as estudiosas. Questionar as regras coletivas aumenta as chances de sobrevivência, conforme alertam estes filmes de modo literal até demais.

A Casa do Terror (2019) segue estes preceitos à risca. É Halloween, quando todos se vestem e saem para beber. Harper (Katie Stevens), no entanto, possui um comportamento diferente dos colegas. Ela não gosta de festas, nem pretende usar uma fantasia. Sucumbindo à pressão dos demais, vai a um bar e a uma casa mal-assombrada. Qualquer espectador minimamente prudente percebe que o lugar não fornece um serviço confiável, mas esta seria a lição didática da fábula de precauções: os colegas hedonistas são incapazes de perceber que o galpão decoração nem letreiros, com o estacionamento vazio e uma recepção informal (um homem silencioso lhes entrega uma chave na entrada) constitui uma armadilha. Costuma-se dizer que os jovens festeiros dos slashers pós-anos 1990 são simplesmente burros, mas talvez eles sejam uma representação exemplar da ingenuidade e da falta de senso crítico. Harper, protagonista com a qual o espectador é convidado a se identificar, constitui a única pessoa sã no meio de jovens abobalhados, sem construção de personalidade nem complexidade psicológica. Como de costume neste universo, quanto mais raso e mais alegre é o personagem, mais rapidamente ele sucumbe aos ataques com machados, lanças, serras elétricas e ferro quente.

Harper possui uma “complexidade psicológica”, ou pelo menos o que os roteiristas e diretores Scott Beck e Bryan Woods entendem como tal. No caso, ela carrega um trauma: a garota ficava escondida embaixo da cama quando criança, testemunhando as agressões do pai contra a mãe. Por isso, questões envolvendo clausura e figuras masculinas autoritárias despertam tanto a ira quanto a fragilidade emocional da garota. A ideia de que um conflito familiar equivalha a uma construção psicológica profunda merece questionamento (tanto no terror quanto em 99% das produções da Disney), no entanto, serve a destacar a garota dos amigos que se entregam como bichos ao abatedouro. O filme se arrisca por um território um pouco mais ousado que a média das produções do gênero: a partir de certa altura da trama, ele sugere que a verdadeira casa mal-assombrada era o lar de Harper quando criança, e que superar os vilões desta casa perversa equivaleria a acertar contas com o pai abusador. Por isso, o local se torna metafórico, até se converter numa representação psicológica exata dos medos da protagonista. O palco de torturas se torna uma representação feita sob medida para Harper, funcionando de maneira autônoma mesmo quando não há mais ninguém na sala de controle. A garota, vestida de Chapeuzinho Vermelho, precisa vencer sozinha os lobos, sem a ajuda do namorado violento, nem do rapaz gentil que busca conquistá-la.

Esteticamente, o resultado se revela convencional e pouco ambicioso. Os jump scares do terço inicial beiram a autoparódia, com efeitos sonoros tão inexplicavelmente altos que apenas sublinham a artificialidade das convenções do gênero. A casa do terror revela uma quantidade impensável de cômodos e arapucas, muito além do tamanho que aparentava do exterior. Luzes se apagando aleatoriamente, portas que se trancam logo após a passagem do protagonista e mascarados de personalidade dúbia surgem em profusão. Talvez o filme pudesse explicitar, seja pelo aprofundamento do horror ou pela ridicularização do humor, a convencionalidade das passagens (como feito em Escape Room, 2019). No entanto, para uma narrativa de terror que se leva a sério, os ataques resultam em cenas simples, com uso fraquíssimo de efeitos visuais, enquadramento e iluminação. O local não desenvolve uma lógica interna para além da sucessão de salas. O terror se constrói a ambientação de maneira respeitável, embora nunca esconda a aparência do gadget, das artimanhas unitárias. Os elementos de medo não necessariamente se conectam nem se comunicam: eles existem na lógica do acúmulo. Para os diretores, quanto mais quiproquós puderem inventar, melhor, pouco importa a relevância dos mesmos para a história pessoal de Harper.

A Casa do Terror ameaça efetuar uma leitura curiosa sobre a monstruosidade, compreendida enquanto desejo de violência. Se a atração macabra é comparada ao lar da protagonista, os assassinos são equiparados ao pai abusador. Por isso, tornam-se pessoas fisicamente asquerosas, cujas máscaras lúdicas (de fantasmas, palhaços) escondem rostos muito piores por trás. O roteiro nunca vai suficientemente longe nesta pista psicológica, apesar da conclusão. Por fim, o projeto tem consciência de que poderia utilizar esta premissa para traçar comentários interessantes acerca do feminicídio e das cicatrizes deixadas por lares abusivos. Ele acena a estas questões, mas nunca deixa que assumam um papel de destaque na trama. Para quem quiser ler o projeto enquanto fábula de emancipação feminina, obterá poucos, porém evidentes, elementos para sustentar esta interpretação. Beck e Woods preferem apostar nas matanças simples (o filme é produzido por Eli Roth, um amante do terror de tortura), que causam algum impacto momentâneo, mas deixam uma impressão de facilidade e conveniência. Não há real possibilidade de fuga, nem mesmo embates memoráveis entre mocinhos e bandidos, apenas a inevitabilidade da morte, conduzida de maneira previsível e anticlimática. Ao menos, um olhar otimista poderia elogiar o discreto empoderamento de Harper, garota antipática a princípio, que descobre através da proximidade da morte uma ferramenta para viver em paz consigo mesma.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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