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Sinopse

Moradora de um cortiço no bairro paulistano do Bexiga, Helen vive um cotidiano de privações aos nove anos de idade. Ela mora com a avó, Dona Graça, que as sustenta com trabalhos informais.

Crítica

A primeira surpresa diante deste drama se encontra no uso dos espaços. Helen (2019) é um filme paulistano, e mais do que isso: ele representa uma imersão pelas ruas do Bixiga, pelo sentimento de um bairro tradicional, com suas mercearias, pensões, as “tias do espetinho de carne”, os cabeleireiros conhecidos por todos. A câmera móvel e a janela em scope se revelam as ferramentas ideais para valorizar o cruzamento das esquinas, as escadarias do centro, a movimentação popular. Dois longos planos-sequências conversam entre si, ainda que com significados diferentes: durante o primeiro deles, situado no início da trama, acompanhamos Helen (Thalita Machado), garota de nove anos de idade, entrando na pensão onde vive com a avó, Dona Maria (Marcélia Cartaxo). A câmera sobe e desce escadas, contorna corredores, efetuando coreografias difíceis que remetem à imersão num labirinto cujo percurso a menina conheceria de olhos fechados. No segundo plano sequência, o mesmo caminho pelos corredores desperta um sentimento diferente: desta vez, o espectador conhece bem a lavanderia, o banheiro, os quartos e pequenos apartamentos que compõem aquele espaço. Durante a última caminhada da protagonista, nós nos tornamos tão familiares com a pensão quanto ela.

Este é apenas um dos méritos notáveis do projeto, que oferece um olhar ao mesmo tempo carinhoso e duro à vida de classe média-baixa, prestes a se tornar ainda mais miserável devido ao cenário em crise. Os espetinhos de carne não vendem tão bem; os produtos de desmanche não rendem mais o que rendiam antes. Pichações de “Marielle vive” pelos tapumes da vizinhança nos garantem que a premissa se encontra no Brasil pós-2018, ou seja, em plena crise do governo Jair Bolsonaro. Diante do empobrecimento geral e da truculência excessiva de policiais, o filme aposta em preciosos momentos de afeto diário para equilibrar a vida amarga dessas pessoas. Ao invés de se concentrar apenas nas batalhas da avó, mulher trabalhadora e exausta, e da menina, ignorada por ambos os pais, o filme constrói uma série de pequenas conexões dentro do cortiço, acreditando num senso de comunidade e de fraternidade, responsáveis pelo otimismo reconfortante da obra. Os primeiros encontros entre Helen e uma moradora cansada de comer o mesmo prato todos os dias (Wallie Ruy, excelente no trabalho de corpo e voz) ou com um casal de novos inquilinos, com um bebê de colo, resultam em preciosidades cênicas, tão simples em termos dramáticos quanto complexos na construção de tempo, nos enquadramentos e na paleta de cores – os verdes, azuis e amarelos muito bem cuidados pela direção de arte.

Seria tentador fazer a narrativa caminhar por meio de alguma catástrofe na vida da menina. O roteiro acena à possibilidade de algo grave acontecer, mas se segura pouco antes da concretização do melodrama. Acena-se às possibilidades do despejo dos protagonistas, da morte da avó, do abuso de força policial, e mesmo de um estupro. Felizmente, o diretor e roteirista André Meirelles Collazzo maneja de maneira sutil este horizonte de opressões que não se concretizam em cena, embora deixem claros os riscos que os personagens incorrem. As cenas mais fortes – a iminência da pedofilia, a violência conjugal no quarto ao lado – são inteligentemente construídas pelos sons fora de quadro, solicitando ao espectador que recorra ao seu imaginário pessoal de abusos para completar os acontecimentos. Mesmo os encontros com o pai e a mãe negligentes garantem momentos sinceros de ternura com Helen. Teria sido conveniente vilanizar o pai, um caminhoneiro de vida livre, e a mãe, uma cabeleireira impaciente, porém o filme jamais trata estes laços como excepcionais. Pela naturalidade com que Dona Maria aborda esta configuração – ela reclama com o filho, mas jamais sugere que ele leve a menina consigo -, compreende-se que núcleos familiares como estes existam aos montes na região.

Em paralelo, as vozes dos ricos se materializam através dos corpos de pessoas que invadem o cortiço com ares de superioridade, usando roupas que não pertencem àquele lugar, apropriando-se dos quartos e dos espaços com voracidade. Tanto na batida policial quanto na entrada do herdeiro do imóvel, percebe-se a arrogância de uma classe cujo único valor se encontra na propriedade privada. É interessante que este novo cinema político de ficção, a exemplo de Aquarius (2016) e Piedade (2019), tenha encontrado na especulação imobiliária o exemplo mais explícito da desigualdade social. Aqui, a companheira de resistência de Clara (Sônia Braga) e de Omar (Irandhir Santos) é Dona Maria, uma senhora que não hesita a pegar uma arma na mão quando necessário (novamente, fora do enquadramento, pois a empatia profunda da direção não permite violências evidentes). Helen é capaz, ao mesmo tempo, de acompanhar uma manifestação religiosa de origem africana, onde a garota branca é acolhida sem sobressaltos, e de filmar as brigas das meninas na escola, quando a protagonista se impõe com a convicção de quem aprendeu a tratar a violência como única saída para os impasses. Estas relações jamais soariam tão convincentes sem o trabalho belíssimo de Marcélia Cartaxo, uma das maiores atrizes brasileiras que o nosso cinema está felizmente redescobrindo, e de Thalita Machado, uma garota excepcional em sua desenvoltura diante das câmeras.

O principal conflito de Helen se traduz em algo tão singelo que, no papel, pareceria magro demais até para um curta-metragem: ela deseja comprar um kit de maquiagem para a avó usar no dia do aniversário. No entanto, o diretor desenvolve este símbolo em profundidade: o presente representaria uma recompensa à avó, que a trata como mãe; significaria algo que as duas poderiam fazer juntas, visto que Helen é apaixonada por maquiagem; e implicaria numa transferência do ideal de beleza materno, já que a mãe trabalha com produtos cosméticos. A festa de aniversário, contra a qual Dona Maria luta, constituiria a oportunidade de reunir pai, mãe e avó, formando a família que Helen nunca teve. A menina de nove anos de idade, que cuida de bebês alheios e protege colegas injustiçados durante um jogo de futebol, possui uma relação complexa com a maternidade e com a filiação, sendo incapaz de chamar o pai e a mãe de “pai” e “mãe”, dirigindo-se a eles pelo nome, enquanto é tratada como “Helen”, ao invés de “filha” ou “neta”. Em sua fina orquestração de relações humanas, pela amizade delicada com o motorista de ônibus (Tony Tornado) ou com o dono de uma mercearia, Collazzo cria um mosaico maduro e comovente, sem forçar uma lágrima sequer do espectador. O aspecto mais valioso do projeto se encontra na resistência silenciosa da criança que tenta, através de um estojo de maquiagem, resolver todos os problemas do mundo – ou, pelo menos, de seu mundo infantil.

Filme visto online na 15ª Mostra de Cinema de Ouro Preto, em setembro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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