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Sinopse

Herege acompanha duas jovens missionárias (irmã Barnes e irmã Paxton) que acabam presas na casa de um homem misterioso, chamado senhor Reed (Hugh Grant). Agora, elas, caso queiram sair dali vivas, serão obrigadas a questionar a fé que acreditam possuir em um jogo que irá testar todas as suas creanças.

Crítica

Se o leitor (como cabe nesse caso, mas se aplica também ao espectador) refletir com bastante cuidado, irá perceber que não há tragédia, guerra, conflito ou desavença nesse mundo – tanto hoje, quanto ontem ou provavelmente amanhã – que não tenha, seja na superfície ou mesmo bem lá no fundo – uma causa, origem ou motivação religiosa envolvida. E a questão nem é tanto a discussão a respeito da fé ou a dedicação pessoal de cada um, mas, fundamentalmente, está na necessidade deste que acredita em convencer – ou, melhor dizendo, de converter – os demais ao seu próprio ponto de vista. Como se apenas um pudesse ter a razão, e os demais estivessem, portanto, equivocados. Mas se não houvesse o “certo” e o “errado”, apenas diferentes interpretações de uma mesma verdade? Este argumento, por demais interessante e passível de múltiplos desdobramentos, é o ponto de partida de Herege. A questão, no entanto, é que ninguém se demonstra minimamente disposto a ir além da mera provocação.

Duas jovens, missionárias da Igreja de Jesus Cristo dos Últimos Dias, estão em campo em busca de novos fiéis. Elas passam seus dias indo de um lado ao outro, abordando pessoas aleatórias na rua e, na maioria das vezes, sendo rechaçadas, algumas com educação, outras com repúdio. Em grande parte dos casos, são apenas ignoradas. Como se não existissem. São pessoas que não sabem nem ao certo o que querem para si e o que esperar dos outros, tão mínimo é o resultado que alcançam com suas peregrinações diárias. Mesmo assim, insistem. E persistem. Todas as manhãs lhes são dadas listas de possíveis interessados em ouvi-las, e assim elas seguem, um novo contato após o outro, esperando que alguma mudança aconteça. Não tanto para aqueles com quem encontram. Nos diálogos iniciais da trama, não se menciona a esperança por um mundo melhor, uma vida mais justa, uma proximidade e uma aceitação maior entre os homens. Pelo contrário, se mostram preocupadas apenas consigo mesmas, com suas metas e o futuro delas na congregação.

Scott Beck e Bryan Woods atuam não apenas como diretores, mas também como roteiristas. E não se mostram dispostos a perder tempo. Pois a história que pretendem contar, de fato, só começa a partir do momento em que a irmã Barnes (Sophie Thatcher, de Yellowjackets, 2021-2023) e a irmã Paxton (Chloe East, de Os Fabelmans, 2022) batem à porta do senhor Reed, interpretado com gosto por Hugh Grant. De galã de comédias românticas a vilão de thrillers com gângsteres, passando por inimigo de um urso perdido em Londres ou mesmo como um diminuto ser mágico fundamental na construção da Fantástica Fábrica de Chocolates, o astro tem demonstrado um apreço pela reinvenção de dar gosto. Aqui, surge como um mestre titereiro, como se todos os laços estivessem a seu dispor e só de sua vontade dependessem para se mover, ou não. Frio em seus argumentos, mas ao mesmo tempo, afável em cada gesto de aproximação, ele se mostra, num primeiro momento, irresistível às meninas. Estará, no entanto, em sua revelação em algo que só tardiamente começarão a suspeitar, o verdadeiro perigo.

Barnes e Paxton querem levar Reed para a igreja delas. Mas no que elas, de fato, acreditam? Onde se encontra a fé de cada uma delas? A partir de uma série de questionamentos, ele lentamente vai demolindo suas convicções. Fosse esse um drama humanístico europeu, ou mesmo oriental, o trio permaneceria sentado numa discussão ad infinitum, contentando-se em levantar dúvidas, sem sequer buscar pelas respostas. Mas não é esse o caso. Beck e Woods possuem afinidade com o cinema de gênero, tendo assinado em conjunto os roteiros de sucessos como Um Lugar Silencioso (2018) e Boogeyman: Seu Medo é Real (2023). Como realizadores, no entanto, Herege é uma tentativa da dupla de se recuperar após o fracasso do ambicioso – e redundante – 65: Ameaça Pré-Histórica (2023). O tombo parece ter tido efeito, e dessa vez se mostram mais contidos, investindo no desenrolar dos acontecimentos e no jogo de tensão que se estabelece com eficiência entre os protagonistas. Reed prende as duas visitantes em sua casa, e as desafia: somente após darem uma prova de suas crenças é que estarão livres. O teste é simples: conseguiriam elas lidar com um milagre, caso esse ocorresse diante delas?

Segundo o dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, herege é aquele que “adota ou sustenta ideias, opiniões, doutrinas etc contrárias às admitidas por determinado grupo”. Ou seja, é quem duvida, quem questiona, quem não aceita tudo que lhe é dito sem um mínimo de desconfiança. Aqui está o ponto de virada: no seu intuito de descredibilizar a religião, Herege tropeça em sua própria armadilha, e termina por virar argumento daquele que ousar apontar o contrário, como se a reflexão e a possibilidade de seguir por um caminho diverso da maioria fosse tendência do maluco, do não ordinário, do insano... enfim, do psicopata. O resultado se mostra apto a servir como peça de catequismo, justamente o oposto do que se poderia esperar de uma promessa como aquela que chega a ser vislumbrada nos seus instantes iniciais. Mas isso é sobre o começo e o fim. No meio, entretanto, está um duelo capaz de prender a atenção, surpreendente pela expectativa que desperta, na mesma medida em que frustra pelas soluções simplistas as quais recorre. Os elementos foram reunidos com precisão. Faltou dispô-los nos lugares certos. E assim, ao invés provocar uma mudança real, tudo o que consegue é ser genérico, igual a tantos outros que vem, vão e são esquecidos.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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