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Crítica


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Sinopse

Simplesmente apagado da história oficial do cristianismo, Hermanoteu foi enviado pelo próprio Jeová para encontrar uma localização desconhecida: ninguém sabe onde fica e tampouco ouviu falar da terra de Godah.

Crítica

Um dos grandes sucessos da Companhia de Comédia Os Melhores do Mundo, a peça Hermanoteu na Terra de Godah foi levada aos palcos pela primeira vez em 1995. De lá para cá foram incontáveis apresentações – sendo que uma delas teve registro em DVD. Agora é a vez da adaptação cinematográfica chegar às telas, de certa forma a reboque do burburinho gerado nos últimos anos pelos especiais natalinos do Porta dos Fundos. No entanto, embora também utilize figuras bíblicas nos papeis principais e passagens das sagradas escrituras cristãs como pano de fundo, este filme não tem o potencial cáustico gerado por Fábio Porchat e companhia. O protagonista é Hermanoteu (Ricardo Pipo), personagem simplesmente limado da História e que tem a sua trajetória revelada ao novo Papa (participação especial de Jonas Bloch) que acabou de ser escolhido pelo colegiado de cardeais do Vaticano. O sujeito simples que vivia de pequenos trambiques na região da Pentescopéia é incumbido de uma missão enigmática pelo atrapalhado anjo de Deus: encontrar a misteriosa terra de Godah, que ninguém conhece e sequer ouviu falar. Desde o começo fica muito evidente o esforço insuficiente para adequar algo de origem é teatral às lógicas do cinema. Sai o palco italiano, há mistura de paisagens naturais, reproduções em estúdio e projeções em fundo verde, mas o DNA permanece o mesmo.

O diretor Homero Olivetto decide não se arriscar muito ao levar Hermanoteu na Terra de Godah ao cinema. Ele faz um “feijão com arroz” que privilegia o ótimo texto da peça e o talento maiúsculos dos comediantes, mas se esquece de tornar a experiência renovada pelas ferramentas próprias ao audiovisual. Aparentemente se apegando à máxima “em time que está ganhando não se mexe”, o realizador parece não querer “atrapalhar” o que funciona há cerca de 25 anos pelo excelente trabalho da Companhia de Comédia Os Melhores do Mundo. E essa subserviência ao original restringe bastante o resultado enquanto filme. Afinal de contas, cinema e teatro são artes com instrumentos e gramáticas diferentes. Uma piada que funciona perfeitamente no palco, atingindo o público ao ponto dos aplausos e das risadas abafarem os atores, nem sempre tem o mesmo impacto quando dita diante da câmera. E isso tem muito a ver com o timming, ou seja, o tempo da comédia, que é completamente diferente nesses dois meios. Homero provavelmente tem ciência disso, mas prefere criar um jogo de cena burocrático, por exemplo, elegendo como intocáveis certos bordões, estratégias e recorrências que têm um peso importante no teatro, mas que no cinema (pelo menos da maneira como são apresentados) não geram grande engajamento. Um exemplo disso é o fato de todos conheceram a irmã do protagonista.

Micalatéia (Adriana Nunes), a irmã de Hermanoteu, é uma prostituta célebre além das fronteiras da Pentescopéia. Toda vez que o jovem em peregrinação pelo deserto (como Jesus Cristo) revela a identidade da irmã, seu interlocutor sugere que teve uma noite de amor com ela. Na primeira, na segunda e na terceira vezes isso até tem graça, mas daí para adiante é somente um bordão repetido sem tanto efeito. Outro indício da submissão à matriz teatral é a decupagem – processo de divisão das cenas em planos – que privilegia os enquadramentos mais fechados e a pouca profundidade de campo. Em Hermanoteu na Terra de Godah quase sempre temos uma encenação engessada feita de plano/contraplano e pouca área da imagem com foco nítido. Essa opção direciona a nossa atenção aos atores, mantendo assim a primazia do texto. Homero não oferece soluções puramente visuais para evitar que tudo seja verbalizado e muito explicado. Assim sendo, o longa-metragem é pobre do ponto de vista da imagem, bem como do som, já que tampouco há uma construção sonora que vá muito além do básico. Então, fica a questão: por que transformar uma peça de tanto sucesso em filme se não for para, justamente, utilizar as potencialidades audiovisuais a fim de dar outros contornos e vernizes ao material original? Há uma combinação de falta de ambição com resignação nessa transposição.

Realmente é uma pena que os responsáveis por Hermanoteu na Terra de Godah não tenham se empenhado para fazer um filme condizente com a longevidade da peça que o inspirou. As boas sacadas como os anjos boca-suja, os hebreus que falam como se estivessem no nosso tempo, os costumes de hoje associados à época anterior ao aparecimento de Cristo, tudo isso é insuficiente diante da fragilidade cinematográfica do que nos é apresentado. Pegando algumas coisas emprestadas de filmes como A Vida de Brian (1979) – especialmente esse deslocamento de façanhas de Jesus para um qualquer desconhecido –, Homero Olivetto mantém vários traços da peça, tais como os atores e atrizes interpretando vários papeis e a estrutura em pequenos esquetes. Falta ao filme a capacidade de esculhambação e a veemência do exemplar lançado nos anos 1970 pelo grupo Monty Python, mas também a malemolência de um Nem Sansão Nem Dalila (1995). A chanchada comandada por Carlos Manga e protagonizada por Oscarito poderia oferecer ao filme uma chave para adequar melhor a ótima paródia do Melhores do Mundo às telonas. Em vez de apenas exagerar nos figurinos e nos cenários abertamente artificiais, Homero poderia ter feito uma sátira dos filmes bíblicos, se valendo de seus lugares-comuns. Mas, o realizador parece tão empenhado em “não atrapalhar” que pouco contribui.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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