Crítica
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Sinopse
Crítica
Omar Sy costuma interpretar personagens charmosos e solares. Porém, em Herói de Sangue ele se distancia desse registro ao dar vida a um homem atravessado em vários níveis pela tragédia do colonialismo europeu na África. No começo da trama, Bakary (Sy) é o pai de uma família senegalesa desmantelada pelo recrutamento de seu filho, Thierno (Alassane Diong), para engrossar as fileiras francesas na Primeira Guerra Mundial. Aliás, o título original desse longa-metragem, Tirailleurs, é exatamente a nomenclatura dada aos combatentes africanos forçados a embarcar rumo à guerra para defender os interesses de uma nação opressora que os subjugou. Assumindo uma postura desesperada e protetora, Bakary mente a sua idade aos recrutadores e se voluntaria para ir à batalha a fim de se certificar que seu filho volte vivo. O cineasta Mathieu Vadepied parte de uma constatação histórica para definir esses sujeitos, especialmente o protagonista, como desgraçados pelas engrenagens do processo sangrento da colonização. Lutar numa guerra que não lhes diz respeito, defendendo as cores de um país que desrespeita a autonomia da colônia e ainda se deparar com o discurso militar de valorização do patriotismo e pertencimento que aos colonizados não faz o mínimo sentido. Felizmente, o realizador desvia do sentimentalismo como um soldado prudente pisando cuidadosamente num campo minado.
Omar Sy estava engajado nessa produção há alguns anos, inicialmente contratado para viver o filho que vai se perdendo enquanto cresce hierarquicamente no exército. No entanto, o tempo passou e ele decidiu assumir o papel do pai superprotetor, o interpretando com uma gravidade incomum a suas aparições recentes no cinema. Ele é o sujeito de semblante fechado que está sempre em busca de uma saída daquela disputa global para ele e o rapaz. Mathieu Vadepied trabalha mais no registro da contenção do que necessariamente no da expansividade dos sentimentos. Portanto, aos arroubos emocionais ele prefere a introspeção, a elaboração mais silenciosa de impressões e incertezas, assim dando espaço para os atores expressarem as nuances dos personagens sem necessariamente fazer uso da palavra para chegar a isso. Dentro dessa abordagem internalizada, Omar Sy e Alassane Diong ganham momentos preciosos para interpretar as complexidades dessa relação entre pai e filho sem incorrer numa verborragia que poderia transformar as cenas em grandes exposições. O efeito colateral dessa contenção toda é que o filme transcorre num ritmo ligeiramente monótono – o que nem sempre é ruim, especialmente quando isso transmite ao espectador o marasmo das longas esperas. Aliás, outro ponto positivo é a negação de uma espetacularização de guerra. A ação é pontual e coadjuvante.
Herói de Sangue perde algumas oportunidades valiosas para transformar a trajetória comum de pai e filho num sintoma ainda mais potente da desgraça colonial. Se o começo e o fim do longa-metragem trazem os signos dessa crítica amarga de modo evidente, o miolo acaba perdendo um pouco de vista as conexões entre a presença dos protagonistas na guerra e a ocupação da França em diversos territórios africanos a ela submetidos como colônias. Mathieu Vadepied fica mais focado na sobrevivência, nos planos que Bakary traça para escapar e voltar à companhia de sua família. Aos poucos, a dinâmica entre pai e filho muda, principalmente quando Thierno cai nas graças de um superior branco que promove a sua ascensão de patente militar. Embora sejam repletas de potencial as cenas que apresentam a inversão de hierarquia entre Bakary e Thierno – o pai, soldado raso, precisa obedecer às ordens do filho, recém promovido a oficial –, o realizador não investe nessa desagregação como outra decorrência de algo que começou quando os franceses colonizaram Senegal. Sim, pois o filho dando ordens ao pai afronta diretamente a tradição do patriarca como centro familiar. Assim como essa, outras situações têm menos força e ressonância do que poderiam/deveriam, a começar pela tentativa gratuita de associação de Thierno com o oficial branco ofuscado pela sombra do pai militar e superior.
Certamente Thierno quer crescer e se emancipar, mas Bakary não é enxergado como uma figura paterna opressora, assim se distanciando do pai militar do oficial branco. Portanto, a tentativa de associação entre os filhos não funciona como poderia enquanto dispositivo simbólico de identificação. Do mesmo modo, não chegam a ser bem exploradas as diferenças de perspectiva entre Bakary, que se mantém firme no propósito sair com seu primogênito da guerra, e Thierno, seduzido pelas regalias à disposição dos oficiais como ele. Mathieu Vadepied situa bem vários aspectos desse cenário complexo e emocionalmente à beira do colapso, mas não chega a desenvolver todos eles em prol de uma unidade consistente e robusta. O resultado é que vários componentes do drama são subaproveitados, ficando aquém dos seus potenciais como peças de um quebra-cabeça cuja imagem final é a perversidade da colonização. Desferindo um golpe direcionado à xenofonia crescente na Europa por conta da crise migratória, o cineasta insinua que o Túmulo do Soldado Desconhecido, situado na base do Arco do Triunfo, na capital francesa Paris, contém os restos mortais de um tirailleur, ou seja, de um soldado forçado pela França a lutar por seus interesses geopolíticos. Se o filme tivesse mantido essa crítica sempre à vista, não a diluindo durante a jornada pessoal de pai e filho, esse encerramento seria ainda mais eficaz.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
---|---|
Marcelo Müller | 6 |
Carlos Helí de Almeida | 7 |
Alysson Oliveira | 7 |
Celso Sabadin | 7 |
MÉDIA | 6.8 |
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