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Sinopse

Linguere Ramatou volta à Colobane, sua vila natal, muitos anos após ter partido. Se quando foi embora ela não era ninguém, agora a situação é bem diferente, tendo se tornado uma das mulheres mais ricas do país. Cada morador do local quer uma parte dessa fortuna, e ela está disposta a compartilhar com eles. Para isso, no entanto, ela faz uma proposta bastante incomum aos seus antigos vizinhos.

Crítica

Há muito tendo partido, Linguere Ramatou (Ami Diakhate) está pronta para voltar à pequena vila no interior do Senegal, onde nasceu e se criou. Ela teve motivos para ir embora, e apesar de todos ainda se lembrarem, preferem agir como se nada soubessem. Principalmente porque a situação mudou – a deles, que estão ainda mais pobres e miseráveis, mas ainda mais a dela, que enriqueceu e se tornou uma mulher poderosa, dona do seu nariz e de muito mais coisas do que os outros podem imaginar. Afinal, estes nada mais são do que Hienas, à espera do momento certo para o ataque, mas com medo de que qualquer consequência por estes atos se vire contra eles. E este filme, dirigido por Djibril Diop Mambéty, é tão ácido em suas diretrizes quanto no olhar que direciona a cada um destes personagens, sem apego, mas também com feroz conhecimento.

Lançado no início dos anos 1990, Hienas é tão atual hoje quanto no momento da sua estreia. A introdução é lenta, sem pressa, nem atropelos. Aos poucos, vamos nos apropriando daqueles cenários áridos, daquela realidade crua, destas pessoas que vivem em constante passo de espera – pelo pagamento da pensão, pela chuva que não vem, pela sorte que nunca chega. O anúncio de que Linguere Ramatou está retornado à casa sua, e não só isso, mas, acima de tudo, em condições melhores do que as de qualquer um dos que ali permaneceram, mexe de imediato com o imaginário geral. Seria ela, literalmente, a “salvação da lavoura”? O prefeito já sonha com uma cidade próspera, os comerciantes anseiam pelo avanço dos negócios, as vizinhas cochicham sobre o que poderá sobrar para elas. Há de tudo um pouco, menos o óbvio – afinal, por que absolutamente ninguém se questiona a respeito dos motivos que a levaram a esse regresso, tanto tempo após ter ido embora?

E assim não fazem porque sabem a verdade: possuem, com diz o ditado, “culpa no cartório”. Quando os anciões se reúnem para discutir como proceder, há apenas uma preocupação: como Dramaan (Mansour Diouf) irá se comportar. Afinal, ele a conhece melhor do que ninguém. Também foi ele o motivo de sua ida. As condições, preferem fingir que nada sabem, nada lembram. Mas Linguere não esqueceu. E chega botando banca: reúne a comunidade e afirma ter uma quantia exorbitante para doar, a metade para a cidade, a outra parte para ser dividida entre os moradores. Só impõe uma condição. Ela quer vingança. Quer que seja pago o preço por tudo que passou enquanto esteve fora. Se sua jornada foi transformadora, apenas serviu para aquele momento, o de cobrar sua dívida. Cada um tem sua parcela de culpa. Mas nenhum carrega nas costas – e na consciência – peso maior do que aquele suportado pelo próprio Dramaan.

Para quem não reconheceu as linhas gerais da trama, trata-se de uma adaptação da peça A Visita da Velha Senhora, do suíço Friedrich Dirrenmatt, texto que já foi adaptado mais de uma dezena de vezes para o cinema e encenado por grandes atrizes, como Ingrid Bergman (A Visita, 1964), e mais conhecido no Brasil pelo romance de Jorge Amado Tieta do Agreste, vivida na telinha por Betty Faria (novela Tieta, 1989) e na telona por Sônia Braga (Tieta do Agreste, 1996). Deixa-se de lados os austeros ambientes europeus, os suntuosos retratos hollywoodianos ou mesmo a sensualidade baiana para se assumir as cores e os cânticos do interior da África. No entanto, o jogo de dissimulações, promessas não cumpridas e instintos mais básicos é o mesmo. Cada um pode ter o seu próprio tempo para revelar suas verdadeiras faces, mas, no final, o resultado é um só: o homem não pode fugir do animal que, irrevogavelmente, é.

Quando revela suas vontades, Linguere é refutada pela cidade. Imagina, fazer tal pedido. Que tamanho absurdo. No entanto, ali estão todos expostos, uns aos outros, e é preciso manter as aparências. Assim que o novo dia surge, porém, as verdades começam a se manifestar. E não tardará para que passem a agir exatamente de acordo com as suas intenções. Uma mudança interessante que Hienas propõe é deixar de lado o ponto de vista da algoz, como é geralmente empregado, e assumir a posição da vítima. Acompanhamos os desenrolar das ações através dos olhos de Dramaan, e não daquela que se acha no direito de, mesmo décadas depois, exigir a cabeça daquele que tão mal lhe fez. E essa alteração faz importante diferença. Pois assim, somos nós, ao lado dele, que nos vemos em desespero. Como animais que somos, mas abatidos, frágeis, sem ter a quem pedir ajuda. Ao invés de um só errar, dessa vez todos cometem o pecado em conjunto. E se esse se torna unânime, segue sendo errado? A dúvida é válida, assim como a reflexão que dela provém. E esta é uma verdade que nunca envelhece.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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