Crítica
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Sinopse
Charlie e Nicole estão casados há mais de dez anos, mas chegou o momento de se separarem. Ele quer seguir trabalhando no teatro em Nova Iorque, enquanto ela deseja seguir carreira em Hollywood. Com um país inteiro entre os dois, como irão lidar com a guarda do filho único?
Crítica
Ele elenca todas as qualidades dela. O bom-humor, sua obstinação, a dedicação ao filho, o cuidado com a casa, o talento profissional, o conjunto que fez com que por ela se apaixonasse. Ela lista, sem ressalvas, todos os méritos dele. A atenção que a dedica, as responsabilidades com a família, a paciência com o processo criativo dela, o respeito com os colegas de trabalho, os pequenos detalhes que disfarça, mas suficientes para que o amor entre eles surgisse. O que o espectador só vem a saber depois, no entanto, é que esse é um exercício proposto por um terapeuta matrimonial. Isso porquê Charlie (Adam Driver) e Nicole (Scarlett Johansson) estão em crise. Após mais de dez anos juntos, não sabem ao certo se devem continuar juntos. Ou melhor: ela está em dúvida. E como ele irá reagir a isso é o cerne da discussão de História de um Casamento, filme escrito e dirigido por Noah Baumbach. Como se percebe, portanto, o título até pode apontar para um problema do casal, mas o roteiro não demora para escolher um lado da questão. E se há evidentes acertos em todo o conjunto, é essa irregularidade no contexto que terminar por evitar um resultado mais equilibrado.
Baumbach, como todo realizador novaiorquinho de sucesso, tem em Woody Allen uma das suas maiores referências. Esse, por sua vez, já declarou inúmeras vezes, inclusive através do seu cinema, que Ingmar Bergman é um dos seus mestres. E se estamos falando do diretor de títulos como Cenas de um Casamento (1973) e Fanny e Alexander (1982), entre tantos outros – mas desses dois em especial – sabe-se de antemão o que esperar de História de um Casamento. Porém, se por um lado os embates entre marido e esposa oferecem o material adequado para que ambos possam explorar o melhor de suas capacidades dramáticas, além de criar o ambiente ideal para uma profusão de diálogos tão precisos quanto urgentes, por outro há a turbulência de um conjunto que luta para encontrar seu espaço, sem que isso seja alcançado a contento. Há um bom filme por aqui, mas ele segue sendo distraído por pormenores que poderiam muito bem ter sido deixados de lado.
Inspirado no seu próprio relacionamento com a atriz Jennifer Jason Leigh, com quem esteve casado de 2005 a 2013, Noah Baumbach escolhe, obviamente, o lado do marido na questão que aqui propõe. É por isso que a audiência é pega de surpresa, tanto quanto o personagem, quando a esposa anuncia que deseja o divórcio. Para ele, era apenas um problema a ser contornado. No entanto, a mulher via o drama que viviam com muito mais peso e seriedade. Os dois se conheceram em Los Angeles. Charlie, no entanto, era um diretor em busca de respeito e reconhecimento, e por isso a família acabou se mudando para Nova Iorque, para que ele pudesse trabalhar no teatro. Naquela época, Nicole estava recém despontando como atriz, com apenas um filme de maior repercussão. A transferência, para ela, acabou soando natural, até como aprimoramento profissional – na maior parte das vezes, era ela a musa e estrela dos trabalhos do companheiro. No entanto, o que foi percebendo, ainda que aos poucos, foi o quanto foi deixando de si em nome do que ele queria. “Eu estava desaparecendo”, chega a declarar. Por isso, voltar para sua cidade natal, mesmo que seja para atuar um seriado de televisão sem maiores perspectivas, soa tanto como a oportunidade pela qual tanto ansiava.
Se o público for até História de um Casamento buscando uma imersão bergmaniana, será com enorme surpresa que por momentos irá se deparar com uma refilmagem improvisada do Ponte Aérea (2015) de Julia Rezende. A separação é por demais civilizada, e ambos estão no mesmo tom quando afirmam que o que realmente importa é o bem estar do filho único, Henry (Azhy Robertson, visto há pouco em Depois do Casamento, 2019). Como não há mais o que discutir, a discórdia entre eles acaba se resumindo entre viverem em Nova York (onde ele trabalha) ou em Los Angeles (onde estão as ofertas para ela). Mesmo não mais sob o mesmo teto, a família anseia por permanecer próxima e unida. Porém, com um país inteiro entre eles, essa não parece ser uma opção viável. Nesse ponto, os advogados entram em cena. Ela abre as portas para Laura Dern dar um show particular com toda a sua excelência, ainda que a composição que oferece não esteja muito distante daquela vista na série Big Little Lies (2017-2019) – desempenho que lhe rendeu um Emmy e um Globo de Ouro, a propósito. Ele, por sua vez, acaba dividido entre a complacência de um Alan Alda ótimo, porém cansado, e um Ray Liotta efervescente, ainda que insistente num único tom. Ambos incríveis, porém com pouco tempo em cena.
Entre sequências desnecessárias – todo o jantar com a visita da observadora é tão inadequado que poderia ser retirado por completo sem causar prejuízo – e personagens que poderiam ser melhor explorados – como a mãe dela (Julie Hagerty, de Apertem os Cintos, o Piloto Sumiu, 1980) ou o veterano da companhia teatral dele (Wallace Shawn, de A Princesa Prometida, 1987) – História de um Casamento acaba reunindo suas forças nas atuações arrebatadoras dos protagonistas. Scarlett Johansson está hipnotizante em passagens de grande emoção (o relato dela no primeiro encontro com a advogada é primoroso), mas o fato é que a câmera de Baumbach está mais interessada nas reações dele, e menos nas ações dela. Assim, Adam Driver acaba descobrindo um terreno fértil para mergulhar de cabeça, indo da raiva ao choro descontrolado, da singela descoberta ao soluçar contido, da impotência ao deslumbre calculado. E quando nada mais há para ser dito, ainda recebe uma cena musical com todos os holofotes em sua direção. Se o Oscar por Infiltrado na Klan (2018) lhe foi negado – e o por Paterson (2016) terminou esquecido – a justiça deverá, enfim, se fazer presente. Ele está de corpo inteiro nessa tragédia silenciosa, tão sofrida quanto previsível. Um desafio e tanto, mas que em mãos como a dele, consegue com habilidade se posicionar acima de qualquer eventual deslize do conjunto.
Filme visto na 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2019
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