Crítica


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Sinopse

Em Holland, Nancy Vandergroot (Nicole Kidman), uma professora e dona de casa, leva uma vida aparentemente perfeita com seu marido Fred e seu filho Harry numa cidade de Michigan, EUA. Entretanto, ao encontrar um par de brincos de pérola, Nancy começa a suspeitar que seu marido leva uma vida dupla. Ao investigar, ela descobre que Fred está envolvido em atividades sombrias, revelando segredos que abalam sua realidade.

Crítica

A trama de Holland se passa numa pequena cidadezinha no interior dos Estados Unidos que parece uma sucursal da Holanda. A cultura das tulipas, as danças folclóricas e até mesmo o nome da localidade dão a entender que ela foi fundada por imigrantes dos Países Baixos. Mas isso não é tratado como algo importante no filme da cineasta Mimi Cave. Nem como sinal da hipocrisia tipicamente conservadora quando um morador é hostil ao latino que leciona na escola. Até porque aqui a personalidade desse fim de mundo aparentemente pacato não é considerada relevante. No enredo, tudo deveria girar em torno de contrastes. Nancy (Nicole Kidman) é a dona de casa submetida à lógica patriarcal desse lugarejo que parece perfeito. Ela se encarrega de cuidar do filho do casal, de garantir que nada falte ao marido optometrista, mas desde o começo é uma personagem um tanto nervosa. Tanto que seu primeiro ato é demitir a babá por supor que ela tenha roubado um dos seus brincos de pérola. O roteiro assinado por Andrew Sodroski, aliado à interpretação desastrosa de Kidman, fazem de Nancy uma figura irritante, que entra em cena sempre para injetar alguma dose de tensão desproporcional nos ambientes. Reconhecida (merecidamente) como uma grande atriz hollywoodiana, Kidman mira no retrato crítico da esposa boazinha e acerta na caricatura, com direito a vozinha enervante servindo como muleta.

Holland
Holland

Em muitos momentos de Holland a entonação vocal forçada (semelhante a uma imitação de “menina legal”) é o único elemento para o espectador se relacionar com a personalidade de Nancy. Mas não fica claro (nem misterioso o suficiente para ser instigante) se a protagonista está realmente exagerando seus modos para se encaixar no papel de mãe exemplar interiorana ou se Nicole Kidman realmente erra completamente a mão na composição da personagem. Nancy é apresentada como uma esposa cheia de paranoias, então somos convidados ao cinismo solene quando ela começa a desconfiar que seu marido, Fred (Matthew Macfadyen), pode ter um caso extraconjugal. Mimi Cave não consegue fazer duas coisas vitais ao mesmo tempo: elaborar a noção de uma comunidade calma que pode esconder segredos escabrosos e desenvolver as pessoas igualmente dúbias que nela habitam. A concepção de Holland como uma localidade de tranquilidade traiçoeira é quase nula, até porque temos poucas coisas além dos personagens principais interagindo superficialmente com a sociedade local. Parece que a cineasta mirou na Lumberton de Veludo Azul (1987) como exemplo a ser seguido, mas se esqueceu de investir na construção de indícios desse cenário que pode esconder um insuspeito lado sombrio. E sobre as intrigas que preenchem a moldura quase vazia, elas não são melhores. O resultado é oco e chato.

Nancy começa a se envolver com seu colega Dave (Gael García Bernal), o latino que tenta fazer as coisas sempre certas, mesmo que fique num meio termo entre o perdido e o atrapalhado. É justamente no desenho desse romance extraconjugal que mora a natureza moralista de Holland. Nicole Kidman não convence como a mulher que se agarra ao romance “proibido” para lidar com a possível traição do marido. Falta ao roteiro explorar melhor os sentimentos dessa mulher, confrontar emoções e ações. Nancy cita muito rapidamente que o marido “a salvou” no passado, ou seja, a transgressão tem a ver com um retorno à sua natureza menos dócil ou qualquer outra coisa? É difícil definir, pois o filme não dá a mínima atenção aos anseios e à psicologia dos personagens, o que torna a experiência de assisti-lo (além de uma prova de resistência), apenas a contemplação de clichês sendo repetidos meio gratuitamente. Mas, porque essa traição traria necessariamente algo de moralista? Porque o enredo não a observa como fruto de um desejo incontrolável ou de algo semelhante, mais à frente a “justificando” nas entrelinhas como uma bem-vinda tábua de salvação para tirar a protagonista de uma situação mortal. Portanto, o afeto superficialmente subversivo entre a dona de casa exemplar e o imigrante latino somente é passível de aprovação porque ele, de certa forma, permite a ambos escaparem do mal incógnito.

Holland é aquele tipo de produção sem personalidade que parece ter sido feita apenas como veículo para uma estrela brilhar. E isso fica claro pela quase onipresença de Nicole Kidman em cena. Há momentos em que ela simplesmente declama monólogos intermináveis diante de coadjuvantes que estão ali para preencher o cenário. É como aqueles guitarristas exibicionistas que aproveitam qualquer oportunidade para sobressair com um solo histriônico e individualista. Enquanto Kidman tenta nos convencer com sua interpretação exagerada (sem motivos para isso) de uma mulher tradicional, a trama vai ficando cada vez mais desinteressante. Tanto que, faltando um pouco mais de 30 minutos para o filme acabar, o roteiro oferecer uma virada que diz respeito às verdadeiras atividades de Fred. Poderia ser uma guinada chocante, mas parece um desfibrilador tentando recuperar o ânimo de uma plateia entediada. Ainda por cima, isso vai “absolver” Nancy do peso da infidelidade, novamente “justificando” porque é uma forma dela inconscientemente escrever certo por linhas tortas. O filme de Mimi Cave não funciona como thriller, derrapa toda vez em que parece querer denunciar a hipocrisia de uma comunidade aparentemente perfeita e não se sai melhor como veículo cinematográfico para Nicole Kidman brilhar novamente. O resultado é a experiência derivativa, com gosto de comida de anteontem.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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