Crítica

Afinal, quem fomos nós e o que poderia ter acontecido conosco? A certa altura de Holy Motors, uma canção joga para o espectador a pergunta, que, muito além de explicitar uma triste relação rompida, mais parece um desafio sobre a multifacetada personalidade do personagem principal e de nós mesmos. E quem for assistir ao novo filme de Leos Carax terá justamente isto: um desafio de esquecer a lógica, o realismo, a objetividade, e mergulhar num mundo de fantasia, sentimentos e personagens abstratos, que podem (ou não) ter algum sentido.

Após 13 anos sem filmar um longa (seu último foi Pola X, de 1999), o diretor apresenta uma ode ao cinema e ao imaginário. Porém, muito diferente de algo como A Invenção de Hugo Cabret (2011), por exemplo. O que há neste filme é uma subjetividade tamanha que talvez (ou melhor, muito provavelmente), boa parcela do público pode deixar a sala de cinema no meio da sessão ou ficar até o fim e sair insatisfeita. A dica é deixar a mente fluir sem tentar entender o que se passa na tela, apenas sentir. Não tão diferente, mas, ao mesmo tempo, muito pouco parecido com o existencialismo de A Árvore da Vida (2011).

O que se pode dizer da história e faz algum sentido é que acompanhamos a trajetória de Oscar (Denis Lavant, excepcional), um ator ou agente (na verdade, nada se encaixa em uma definição apropriada) que, a cada chamado “encontro” que deve realizar para uma corporação (que também nunca sabemos para que serve), traveste-se de um diferente personagem. Dentro de uma limusine branca, ele inverte seus papéis a cada parada, cruzando uma Paris iluminada noite e dia, mas por vezes também obscura, passando por ruas, restaurantes, esgotos, cemitérios e arranha-céus.

A intensa diversidade de novos rostos de Oscar, assim como as tramas para cada pequena história de Holy Motors, evidenciam uma paixão do realizador não só pelo cinema em si, mas também a toda sua concepção, do ato de filmar ao de assistir. A cena inicial, interpretada pelo próprio Carax, já nos faz adentrar, literalmente, na tela da sala escura. Nisso, o nome Oscar pode ser um tanto irônico ao representar o prêmio máximo do cinema mundial em um filme que nunca teria chances na competição devido ao seu conteúdo, digamos, fora do usual.

A cada personagem, surge uma nova história. Porém, o que poderia ser uma série de contos bem amarrados por um roteiro coeso e uma montagem mais do que eficiente, torna-se uma alusão a uma Alice em uma terra cheia de maravilhas. Apenas não sabemos se realmente “é tarde” para o personagem, já que não há um coelho branco para lhe (nos) dizer isto. Pelo menos, não à primeira vista e não do modo como costumamos vê-lo.

Esta jornada em torno não da história do cinema, mas sim por dentro de sua gênese e de seus gêneros, acaba sendo uma boa desculpa para um visual dinâmico em que Oscar torna-se uma mendiga, um ator de captura de movimentos (beirando ao erótico) e uma Fera perdida no esgoto em busca de sua Bela (no caso, a modelo Kay M, interpretada – propositalmente – apática por Eva Mendes). Sem contar momentos de atuação hollywoodiana (com direito a gângsteres) e outros em que parecemos conhecer um pouco mais não dos personagens, mas sim do homem por trás destas máscaras.

Em certo momento, vemos um carro (não a limusine) parar em frente a um prédio com a música Can’t Get You Out of My Head, de Kylie Minogue, ao fundo. Uma metáfora ao que a filha de Oscar sente em sua pré-adolescência: a falta de sensualidade e o questionamento de não conseguir atrair o sexo oposto. Algo que torna-se um diálogo sofrido e repleto de mentiras (ou seriam meia-verdades?) com seu pai.

Por sinal, é a própria Kylie quem interpreta (e de forma assustadoramente magnífica) o grande amor perdido do protagonista. Jean e Oscar se separaram há mais de vinte e anos e nunca sabemos o porquê. Talvez seja uma criança perdida, como a já citada música Who where we (interpretada pela bela voz da também cantora) sugere, assim como os manequins aos pedaços no chão da casa onde eles tem sua derradeira conversa, que poderia selar uma paz nunca alcançada.

A questão é que, com respostas ou mais perguntas, o deslumbre das imagens se mescla à profundidade de um homem à beira da insanidade e que não tem vida própria. Oscar passa seus dias interpretando outros e sequer tem um mínimo controle do que acontece consigo. E o diretor consegue explorar sua intimidade tornando o espectador próximo daquele que vê na tela, criando um duplo com a realidade, os sonhos e a frustração de cada um.

Paris está para Holy Motors como Los Angeles estava para Cidade dos Sonhos (2001), de David Lynch. Um paraíso de violência interna e explícita, com sonhos alcançados e destruídos no mesmo grau. A produção de Carax talvez não seja tão trágica como a de Lynch. Pelo menos, não visualmente. O que fica é a ironia de uma garagem repleta de limusines brancas que só querem saber de se livrar de seus patrões após um dia de trabalho e descansar. Amém. Realmente, santos motores.

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